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Crônicas
08/01/2008 - 10h36
Um estranho batizado
Nei Duclós
 

Meu pai proibia que os filhos fossem batizados, mas não abria mão de ter um compadre. O compadre é o parente que se escolhe, não o que se herda. É possível convidar alguém para apadrinhar os filhos, mas não se pode evitar um irmão indesejado. Ao ceder, por amizade e admiração, uma porção da paternidade para alguém que será o padrinho do seu filho, o pai cria uma ligação para toda vida entre duas famílias. O pai substituto empresta sua palavra de que o pequeno pagão está convicto de entrar para a Igreja. A criança não pode fazer sua declaração, então o padrinho vem em seu nome jurar, como dizia uma das canções que entoávamos nas missas.

Mas o que fazer quando o padrinho fica proibido de levar o garoto para a pia batismal? Lá na fronteira, o impasse foi prontamente solucionado. A pessoa convocada para ser meu padrinho num certo entardecer, num encontro bem na frente da casa de esquina que era nossa, concordou com tudo. E jamais foi me batizar, apesar de, a partir dali, se tornar um dos compadres do meu pai. Ele nunca iria desobedecer ao amigo, nem recusar o convite. Assim é a têmpera dos homens da fronteira: palavra dada, palavra cumprida. E a honra deve ser acolhida como prova de amizade, que lá naquelas plagas, costuma ser verdadeira, portanto, eterna.

Como havia a proibição paterna, fiquei até os três anos de idade ameaçado da condenação na outra vida. Isso afligia minha mãe, que não podia convencer o padrinho a trair a palavra dada. A solução foi tão prática quanto a declaração do compadrio. Minha mãe pediu para sua irmã, minha tia Maria, professora rigorosa do primário em colégios do subúrbio da cidade, a levar pela mão o garoto em pecado e batizá-lo, sem que o pai soubesse. E Tia Maria, sem festas nem cerimônia, me apresentou ao padre que me banhou de água benta. Deve ter sido um evento impactante, pois quando cheguei em casa, falei bem alto o que se passara, quase colocando a perder os cuidados para que tudo se passasse em segredo.

Foi assim que meu pai ganhou um compadre e eu um lugar na Igreja. Só conheci de fato meu padrinho numa Feira do Livro de Porto Alegre, numa tarde de lançamentos. "Sabes que tens um padrinho?" me disse alguém, me olhando com aquele ar bondoso que não vejo mais nas pessoas e que talvez fosse apenas a percepção emocionada da criança querendo ser aceita pelos adultos. Não sei, respondi. "Pois, tens. Sou eu" e disse seu nome. O senhor de óculos e boné, falando e caminhando lentamente, então me mostrou uma foto do meu pai, dedicada a ele, meu padrinho. Na foto, o pai estava vestido para a caça, de arma em punho, com algumas perdizes a tiracolo.

Meu estranho batizado não teve festa nem celebração. Não me foi permitido comemorar, mas nenhuma criança comemora o próprio batismo. Na prática, eu tinha apenas uma madrinha, minha tia Maria, rigorosa professora do primário no subúrbio. Agora tenho um padrinho, ao qual beijei a mão pela primeira vez. Ele representa meu pai, seu grande amigo. E usei, na dedicatória do livro que lhe entreguei, seu sobrenome na hora de assinar. Faço parte da sua linhagem, secreta, como meu batismo, afetiva, como tudo o que os anos trazem de volta.

O tempo é a palavra coração.


Nota do Editor: Nei Duclós é autor de três livros de poesia: "Outubro" (1975), "No meio da rua" (1979) e "No mar, Veremos" (2001); de um romance: "Universo Baldio" (2004); e de um livro de conto e crônicas: "O Refúgio do Príncipe - Histórias Sopradas pelo Vento" (2006). Jornalista desde 1970 e formado em História.

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