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Crônicas
11/01/2008 - 15h28
Vida nova
Nei Duclós
 

O presente é a soma do passado, nos diz Henri Bergson, o filósofo que escrevia tão bem que ganhou o Nobel de Literatura em 1927. E escrevia em francês, uma língua em que "passa o alho" soa poético. O que ele sugere, pelo menos para mim, que freqüento a filosofia com a prudência dos leigos em território sagrado da linguagem? Sua prosa, que escorrega como manteiga em dia de sol, ao contrário de muitos alemães, que escrevem para serem lidos em ambientes com temperatura abaixo de zero, desmascara o eterno presente. Praticamente enterra a ilusão reinventada todo ano pelo pêndulo das festividades, esse eterno retorno de falsas necessidades de consumo.

O presente é uma impossibilidade, por ser volátil e não se sustentar no tempo em transformação. Não vivemos infinitamente no espaço confinado de momentos, já que não nascemos a cada segundo, ou não nascemos ontem, como costumamos dizer para estouvados iconoclastas imberbes (ah, essas inesquecíveis palavras em desuso...). Acumulamos vivências, como um jornalista veterano estoca recortes antigos. Ou como uma tia que eu tive (ainda tenho?), que ao morrer deixou seu quarto atulhado de caixas de papelão e vidros limpos que outrora continham doces. Objetos com tampa, para o caso de alguma necessidade.

O passado se presta a inúmeros equívocos. Um deles é que podemos nos livrar de nós mesmos, como borboleta que abandona a lagarta seca. Vemos como, nas mudanças, as pessoas resolvem se livrar da tralha acumulada. Vida nova, dizem, convictas. Colocam a maior parte das traquitandas na frente da casa que será abandonada. Aos poucos, aquele joio será recolhido, mas ainda resta muita coisa. Tenta-se negociar, mas os comerciantes do ramo sabem que o acúmulo de coisas inúteis é uma armadilha que não vale um tostão furado. Então, paga-se para levarem o mais pesado do que o ar: estantes de ferro vencidas, móveis que não cabem mais em vivendas pós-modernas, abajures criativos dos 70 que perderam o carisma, máquinas analógicas superadas pela vilania digital.

Mas ainda sobram mais coisas e então aquele lixeiro, líder do grupo, aceita amarrar os trastes ao caminhão que vocifera. Pronto, é assim que nos livramos do passado. Restaram alguns volumes insubstituíveis, que nenhum sebo comprará por mais de quatro reais o exemplar, mesmo que se trate das obras completas de Fernando Pessoa ou o Machado de Assis definitivo. É hora de fazer também esse último sacrifício. E, quase sem nada, se decidir por uma viagem que resolva a vida pessoal sempre complicada no país maquiado e em ruínas.

Há esperança. O presente se apresenta mais leve e o futuro se abre sem a carga mortificante da memória nas costas. Recolher-se ao ermo, alugar uma casa de sapé, ocupar um quarto no vasto litoral, na curva do morro, embaixo de uma figueira em flor. A nova vida chega carregada de perspectivas, de sonhos enfim realizados, de solidão filosófica, de contemplação criativa. Nada de barulhos de metais, de baticuns. Serra, só a do Mar.

É quando o sol se põe para sempre. Nunca mais vai amanhecer nessa vida que resolveu jogar o passado fora. A noite assoma como prisão. Já ouvi falar de gente que saiu correndo logo depois de cruzar a madrugada inaugural no sítio escolhido para ser a redenção. Alguns se atiraram ao primeiro churrasquinho de gato na beira de estrada. Precisavam do passado, precisavam da eternidade. O ano mal tinha começado com seu bem-vindo acervo de conflitos.


Nota do Editor: Nei Duclós é autor de três livros de poesia: "Outubro" (1975), "No meio da rua" (1979) e "No mar, Veremos" (2001); de um romance: "Universo Baldio" (2004); e de um livro de conto e crônicas: "O Refúgio do Príncipe -Histórias Sopradas pelo Vento" (2006). Jornalista desde 1970 e formado em História.

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