Há bem mais de meia dúzia de novos hábitos, de novas expressões, de modas recentes que me deixam muito, muito irritado. A conseqüência, vocês já sabem: André Falavigna fica irritado, então André Falavigna resolve transformar sua crônica semanal em divã psicanalítico, preenchendo-a com palavrões, termos de baixo-calão e muitas citações muito feias à mãe dos outros, além de sair por aí cagando regra como se fosse alguma criatura híbrida surgida do cruzamento entre um fiscal da prefeitura e um hipopótamo. Isso é para vocês verem a idéia que faço da psicanálise. De quebra, escrevo meu próprio nome, André Falavigna, três vezes só no primeiro parágrafo. E é só o começo. Preparem-se. Acordei assim meio, como direi? Ativista. Agora, só falta ligar o ventilador. Já que a intenção é combater os modismos, vamos manter pelo menos esta tradição: vou começar pela croniquinha. Croniquinha é como chamo nosso jornalismo esportivo. Camaradas: pelo amor de Deus, que tal ao menos tentar entender para que servem as palavras que a gente usa? É fácil. Dicas? Comecemos pelo desconhecido Houaiss, exemplo de um tipo perdido de literatura em nossas redações esportivas. Trata-se de um dicionário. Nesse livro fantástico se pode encontrar o significado de uma porção de palavras. Para facilitar a consulta, vocês nem imaginam: os caras que o fazem são tão legais que dispõem as palavras em ordem alfabética! Dá pra acreditar? Há sempre, nesses livros, bom espaço para as palavras que começam com uma letra que se chama "Dê". É lá que a gente encontra, por exemplo, o malfadado vocábulo "diferenciado". Como o pessoal da croniquinha o utiliza para qualificar as coisas mais variadas, achei bom dar aquela olhadinha desinteressada no dito cujo para descobrir que diabos ele é, afinal. Vejamos do que se trata: Acepções • adjetivo 1 que se diferenciou Rubrica: biologia. 2 que sofreu diferenciação (diz-se de célula ou tecido) Hummmm... Coisa curiosa. Pelo modo como vejo sendo empregado o termo, sobretudo na cobertura futebolística, jurava que "diferenciado" se referisse única e exclusivamente àquilo que fosse espetacular, supimpa mesmo, e que de preferência pudesse ser conectado à superioridade ontológica de certos entes, notadamente se estes entes fossem de alguma maneira relacionados ao progresso, ao bem e à verdade como, por exemplo, o são o vôlei, a memória de Ayrton Senna, a comida sem sal e sem gordura, as militâncias antitabagista, antiglobalização e antiimperialista e, por último mas não somente, o São Paulo Futebol Clube e tudo que lhe dissesse respeito. Poxa vida, não é bem isso! Imaginem vocês que, do modo como está no dicionário, todas as mil duzentas e quarenta e sete vezes que, em 2007, disseram que aquele rapaz, o Dagoberto, era di-fe-ren-ci-a-do (por favor, pessoal, vamos escandir tudo bem gostoso), não o disseram porque ele é um sujeito acima da média em tal ou qual aspecto. Na verdade, era só porque o menino se tornou diferente em qualquer aspecto (não se sabe nem se em relação a si mesmo ou à média; creio que isso deva ficar a critério de quem soletra "di-fe-ren-ci-a-do"), a partir de alguma época, para o bem, indiferentemente ou - revelação chocante - até mesmo para o mal. Ora, certo dirigente do Palmeiras disse coisa parecida de Richarlyson, e o cara virou uma arara. Fico pensando: e se estivessem todos utilizando a coisa em algum sentido técnico, como aquele da rubrica "biologia"? Espero que não, mesmo porque, em última análise, alguém poderia entender que Dagoberto é um neoplasma gigantesco, todavia fofo. Vai saber. Adelante. Aquela de se dizer, "ah, isso não se usa mais", ou ainda "hoje em dia é assim, portanto...". A atualidade de determinada postura não lhe confere a mais mínima autoridade. Até que me provem por que deveria conferir, vou continuar preso a essa coisa tão fora de moda que é a lógica. Deveria ser simples perceber isso, mas não custa nada reforçar a imagem recorrendo a outras que lhe sejam irmãs: Funciona mais ou menos deste jeito: digamos que você vai se casar. Não lhe dou duas semanas até que surja o inevitável sapeca encarregado de lhe dizer que hoje em dia ninguém mais dá bola para o casamento. O mesmo para o batismo, para a primeira comunhão e para a crisma. Que tipo de resposta as pessoas esperam quando dizem coisas assim? Funeral, funeral ainda se usa? Ou só se usa cremar e pronto, sem sentimentalismo barato? Cremar é moderno, né não? Você sai para almoçar com o pessoal do trabalho e é o único a pedir Coca-Cola, Coca-Cola Coca-Cola mesmo. Os outros, não satisfeitos em ingerir as beberagens mais exóticas (como as Coca-Cola que não são exatamente Coca-Cola), ainda ficam reparando, sem pudores, no fato de que sim, restam pessoas decentes no mundo; pessoas que se recusam a beber líquidos projetados não para atender ao velho e bom prazer de se beber bebida gostosa gelada de montão, e sim às exigências estético-morais do dia. Também não atendo mais a quem diga "par" no lugar de "pá". Isso, agora dei para defender gírias. A juventude paulistana de antigamente dizia "uma pá de coisa". A de hoje diz "uma par de coisa", locução não só inculta como, ainda, desprovida de sentido. Se quisessem abandonar determinada gíria para assumir outra, ora, é chato, mas pelo menos já nos acostumamos. Agora, se for para inventar gírias que não se prestam sequer a dizer algo humanamente inteligível, bem, não contem comigo. Os defensores da desregulamentação da língua para fins de integração social têm diante de si a prova de que, no lugar de incluir, o incentivo aos padrões não cultos como forma de expressão segrega, distancia e confina as pessoas em guetos cada vez menos capazes de falar uns com os outros, e todos com quem quer que seja. Também não quero saber de música eletrônica. Nem de circos sem animais. Nem de calcinhas com abertura dianteira. Nem de esportes radicais. Nem de piercing, seja na cara, no nariz, no umbigo ou sabe Deus lá onde. Vodka é uma bebida translúcida. Mulher tem que ter cabelo, por tudo quanto é sagrado. Pizza é de mussarela. Se alguém me disser, na rua, que torce por um time de outro país, cuspo-lhe na cara. Sexta-feira é dia de beber. Homem que usa pochete sofre de pruridos esfincterianos irresistíveis. Margarina, passo. Futebol no rádio é mais emocionante. Os livros de papel não serão extintos. Prefiro ruas de paralelepípedo. Tenho saudade do tempo em que o cachorro da gente ou era vira-latas, ou pastor alemão. As velhinhas tinham pequinês. E de quando a palavra "moderno", na letra "eme" de um troço chamada Aurélião, designava apenas as coisas relativas à época em que se estava vivendo enquanto se falava "moderno". Nem necessariamente bom, nem necessariamente mau. Apenas moderno. Nota do Editor: André Falavigna é escritor, tendo publicado dezenas de contos e crônicas (sobretudo futebolísticas) na Web. Possui um blog pessoal, ofalavigna.blog.uol.com.br, no qual lança, periodicamente, capítulos de um romance. Colabora com diversas publicações eletrônicas.
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