Contos da Mula Manca
Tenho uma amiga que cultiva o bizarro costume de passear em cemitérios. Como é muito viajada, faz parte de suas visitas a outras cidades o cemitério local. Ela não é gótica nem sequer mórbida, apenas gosta da paz e da tranqüilidade que muitas vezes só são encontradas na casa dos mortos. E também da arquitetura, vários são lindos, aliada à memória e à história dos vips que ali encontraram sua derradeira morada. Pois vi essa moça outro dia meio jururu. A tristeza também tinha a ver com morte, mas dessa vez mais pessoal. Os dois melhores amigos dela morreram não faz muito tempo, com diferença de meses um do outro. E ela anda pensando muito neles: “Janeiro é um mês comprido, quente, meio chato para quem vive de frila feito eu, quase não pinta trabalho e conseqüentemente não pinta dinheiro”, explicou com um biquinho de seriedade. “Sem querer fazer desse fato da vida nenhuma tragédia, ele acaba me remetendo aos que perdi.” Eu, mula, fiquei sem saber o que dizer e muito menos sem entender o que tinha a ver uma coisa com a outra. Mas tentei argumentar que janeiro era mês de férias, as pessoas estão felizes, viajando, tomando caipirinha, se bronzeando, que passa logo. E já que novembro tem uma data especial para lembrar dos mortos, que ela se contentasse em ficar triste pelos que perdeu durante essa época, no resto só lembrasse deles com carinho. Ela discordou, acha o fim de ano um período complicado, com muitos compromissos, quando a gente não tem tempo nem para se coçar, mas o banzo e os 31 intermináveis dias de janeiro remetem a essa e outras questões mal-resolvidas. “Veja, querida mula”, explicou-me com toda paciência. “Muitas vezes o maior problema do mundo parece ser falta de grana, com que roupa eu vou, para onde essa noite, a última briga com o namorado, esse tipo de coisa. Como ando num desânimo total, às vezes me pego meio louca, penso em ligar para os falecidos, afinal eram meus melhores amigos e amigo é pra essas coisas, como sabemos. Aí caio em mim – e quase caio do lado de fora – ao constatar que meus problemas, reais ou imaginários, são problemas da vida, enquanto eles nem mais essa chance terão.” Fiquei chocada com tamanha confusão entre vivos e mortos, mas ela deu mostras de que se recupera e que voltará a freqüentar cemitérios: “Não se preocupe, mula, sei que isso é fase e que passa, afinal de contas, como diria o saudoso Ulysses Guimarães, enquanto há vida há esperança”. Nota do Editor: Maria Ruth de Moraes e Barros, formada em Jornalismo pela UFMG, começou carreira em Paris, em 1983, como correspondente do Estado de Minas, enquanto estudava Literatura Francesa. De volta ao Brasil trabalhou em São Paulo na Folha, no Estado, TV Globo, TV Bandeirantes e Jornal da Tarde. Foi assessora de imprensa do Teatro Municipal e autora da coluna Diário da Perua, publicada pelo Estado de Minas e pela revista Flash, com o pseudônimo de Anabel Serranegra. É autora do livro “Os florais perversos de Madame de Sade” (Editora Rocco).
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