Saio do metrô e abraço mais uma vez a cidade mutante dos meus sonhos. Procuro o telefone público mais próximo, nele estão grudados minúsculos anúncios, promessas de sexo total. Mas o impacto é presenciar o assalto ao caixa-eletrônico. O assaltante espetou o revólver no fígado do homem, pediu que ele digitasse a senha e sacasse tudo, rápido, rápido. O homem sentiu-se mal, cambaleou e caiu antes de digitar o último número. O assaltante saiu correndo com o revólver de brinquedo, esbarrando em discretas senhoras que oferecem a salvação em revistas evangélicas. A cidade que me acolhe também assusta, me faz mudar de rota, desvio caminhos, evito aquela alameda de árvores frondosas, o perfume dos jasmins, o silêncio e o sossego podem esconder o perigo. Nos outdoors, palavras de ordem contra a violência: Onde há arma, há tiro, a mão que empunha o revólver visa o alvo, ensaia a mira, não quer errar. O cheiro das velas acesas pelas almas dos aflitos e dos enforcados mistura-se ao perfume das flores vendidas na calçada da igreja, do incenso na loja de umbanda e à fumaça dos churrasquinhos que marcam a “hora feliz” a céu aberto. São Paulo dos ipês e das azaléias, das montanhas, ladeiras e pequenos vales, que não é minha, mas que adotei sem perguntas, é demasia. Onde tudo se movimenta, se altera e se multiplica, amadureço, sem explicar nem justificar descompassos. Cruzando, parando, seguindo, ora me estranho, ora me reconheço, enquanto os anos passam e ela parece não ter fim. Uma pequena multidão se aglomera na murada do viaduto para ver uma batida de carros na pista da Avenida 23 de Maio. Freadas bruscas, rangidos metálicos corroem a tarde, enquanto o sol se põe escandaloso, incendiando o céu. O horizonte rubro transcende além dos viadutos, da muralha de edifícios. Num banco de cimento, dois homens terminam o jogo de damas empatado, esfregam as mãos satisfeitos e combinam a próxima partida no mesmo local. Se não houver tremor de terra nem explosões, garantem que tudo estará no mesmo lugar no dia seguinte. No meio da manhã, a fila dos desempregados e a dos que esperam o almoço por 1 real, na mesma rua, olha a massa de vestibulandos que lotam padarias e lanchonetes. Um transe contínuo liga todos os movimentos. Apresso o passo e me vejo pisando em ruas com nomes dos rebeldes tenentes de 1924: Siqueira Campos – o paulista que também liderou o levante do forte de Copacabana, em 1922, e morreu num desastre de avião no rio da Prata. Mais pros lados da Vila Mariana, a Rua Joaquim Távora, de onde arrancaram os paralelepípedos para montar trincheiras de guerra. No bairro da Aclimação, ruas com nomes de planetas e pedras preciosas – Urano, Saturno, Safira, Turmalina, Topázio. Bem-te-vis, periquitos e maritacas dividem o canto com o som de britadeiras, betoneiras, enquanto guindastes fantasmagóricos cruzam ares empoeirados. Paro na Avenida da Aclimação diante de uma tigela de açaí e vou me refugiar no parque. Na entrada, mato a sede com água de coco e assusto os pombos. Dou a volta ao lago, cruzando com as esculturas brancas de Ianelli espalhadas pelas alamedas. Deito na grama e olho mais uma vez o céu da cidade em eterna construção. Nota do Editor: Ieda Abreu é jornalista e escritora.
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