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Crônicas
27/01/2008 - 13h13
Saída do Recife
Risomar Fasanaro
 

Há brumas no porto do Recife. Não. As brumas não estão no porto. Estão no meu coração de criança, sofrendo sua primeira grande perda.

Era o início do mês de maio, a brisa marinha soprava leve e eu tinha sobre os ombros um xale negro, enorme, presente de dona Maria, uma velhinha benzedeira que morava em Piedade, atrás da Vila Militar de Socorro, Jaboatão, onde eu morava.

Ela usava sempre aquele xale e eu gostava tanto dele e falava tanto sobre ele cada vez que ela me benzia, que antes de vir embora para São Paulo, ela deu-me o xale de presente. Quase não acreditei. Eu, ganhar aquele xale de presente? Tê-lo para usar sempre que eu quisesse? Impossível traduzir a emoção que senti.

- Leve, minha filha, e que Nossa Senhora te cubra sempre de bênçãos, que nunca vi menina desse tamainho gostar tanto de coisas de gente grande.

Dona Maria ficava sentada em um banco comprido de madeira, no imenso quintal da casa, varrido com vassoura de capim verde e tão limpinho era o terreiro, que nele não se via um pedaço de papel, uma folha sequer.

Em toda a frente da casa havia pés enormes de manjericão, dálias, jasmins e um grande pé de resedá, flor que se perdeu na memória e nunca mais a encontrei.

Todas as vezes que eu ia lá, entrava na casa de farinha, no fundo do quintal. Era um galpão iluminado apenas pela luz do dia. Tão quente, tão quente, que só o interesse por aquele mundo diferente, me levava ali a bisbilhotar tudo.

Em um canto ficava uma pilha enorme de mandioca brava, que só serve para fazer farinha, diferente da macaxeira que é comestível.

Algumas mulheres sentadas no chão, com as saias espalhadas, rindo e conversando todo tempo, descascavam e raspavam as macaxeiras. Os rostos afogueados e os colos brilhavam de suor enquanto executavam aquela tarefa. Em seguida elas lavavam as mandiocas e as levavam às cevadeiras, uma espécie de moinho onde eram trituradas, separando-se assim o bagaço do caldo que era aparado em vasilhames. Depois de alguns dias, aquele caldo era passado em urupemas para retirarem a massa fina que ali se sedimentava.

Às vezes mamãe mandava comprar um pouco daquela massa para fazer bolo Souza Leão, ou bolo pé-de-moleque. Com aquela massa, dona Maria fazia tapioca recheada com coco raspado. Provavelmente era com a venda daquelas tapiocas que conseguia sobreviver.

O bagaço da mandioca era levado aos fornos, altos e circulares, como um enorme chapéu em que houvesse uma pequena abertura na copa, por onde se colocava carvão que, transformado em brasa, alimentava e aquecia a grande aba em volta. Trabalhadores munidos de espátulas com grandes cabos iam espalhando continuamente aquele bagaço, agora farinha, para que ele torrasse por igual.

Depois de ver a casa de farinha, Ana ou Judite, as moças que trabalhavam em minha casa, nos levavam para dona Maria nos benzer, a mim e à minha irmã, Mércia.

Munida com folhas de pinhão, dona Maria fazia o sinal da cruz com os ramos, enquanto dizia:
- Com dois te botaram, com três eu te tiro, com a graça do pai, do filho e do Espírito Santo! Com dois te botaram com cinco eu te tiro, com as cinco chagas de Nosso Senhor Jesus Cristo! Vai-te pra cima de quem come ovo sem sal!

Passava os três ramos de pinhão em cruz sobre meu peito e dizia: “vai-te pra cima de quem não toma a bença a pai e mãe!” Repetia várias vezes o sinal da cruz sobre minha cabeça, peito e costas e depois concluía:
- Ela está com quebranto de homem.

De outra vez dizia:
- Diga a dona Nena que hoje ela está com quebranto de mulher.

Para mim até hoje é um mistério. Como ela sabia, com tanta certeza, se o quebranto era de homem ou de mulher?

Eu adorava fazer parte, me envolver nos mistérios daquela mulher, sempre com um vestido branco que ia até os tornozelos e aquele xale negro sobre os ombros.

Mas houve uma ocasião inesquecível. Uma cena de que me lembro com todos os detalhes, como se tivesse acontecido hoje.

Quando chegamos, ela estava benzendo uma moça. E conforme ela dizia: “vai-te pra cima de quem come ovo sem sal”, a moça dizia : “Ai, dona Maria, eu só como ovo sem sal...” Aí a benzedeira dizia: “vai-te pra cima de quem dorme sem rezar!” E a moça: “Ai, dona Maria, eu só durmo sem rezar...” E ela em uma nova tentativa: “vai-te pra cima de quem não toma a bença a pai e mãe!” E a moça: “Ah, dona Maria eu não tomo...”

E pela primeira vez vi aquela doce mulher demonstrar irritação:
- Ah, minha filha, assim fica difícil!...

Pôr aquele xale sobre os ombros talvez fosse uma forma de reter comigo, no instante da partida, tudo aquilo que estava perdendo: o olhar de doçura de dona Maria, o cheiro de manjericão, a singeleza daquele quintal...

Naquela noite da partida, eu estava com o xale e sem que eu percebesse um ponto do crochê se rompeu ao enganchar-se na roupa de alguém de quem eu me despedia. E quando o navio começou a se afastar do porto, os elos foram se desfazendo como se, em um último gesto, o xale quisesse a qualquer custo impedir que eu partisse de minha terra. Mas os elos eram de linha e eu, apenas uma criança.


Nota do Editor: Risomar Fasanaro é jornalista, autora de “Eu: primeira pessoa, singular”, obra vencedora do Prêmio Teresa Martin de Literatura em júri composto por Ignácio de Loyola Brandão, Deonísio da Silva e José Louzeiro. Militante contra a última ditadura militar no Brasil.

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