Fosse feito de outra matéria-prima, que não carne e osso, Zequeu bem se enquadraria nos modelos metamórficos. Uma duna, por exemplo - sempre se moldando ao humor dos ventos. Não era casual, portanto, que já tivesse experimentado de tudo um pouco nessa vida. Gerente de bordel, detetive particular, contador de casas de bingo, motorista de madame, massagista de clubes privês femininos, conselheiro sentimental, professor de gafieira. As atuações invariavelmente resvalando os limites da vigarice. E como se dera bem. Pulseiras de ouro, sapatos em cromo alemão, ternos de corte italiano, loções francesas, carrões incrementados. Claro, um mulherio que se envergava a essa excelência. Nem precisara se inscrever em cursos de oratória, porque o dom lhe viera no sangue. Duas frases, um ar apropriado para cada ocasião, e estava armado o cenário. Assumia papéis sem carregar culpa. Em resumo, se apoiava em dois princípios: dinheiro não tinha carimbo de procedência, e oportunidades haviam nascido para que alguém delas se aproveitasse. Um anúncio na tevê, uma propaganda de rádio, uma página de jornal, uma novidade na internet. Qualquer meia linha era o bastante para inspirá-lo. E agia também a esmo. Só pelo tino. Foi por exato esse impulso que o levou até ali. Retorno da pescaria, carro quase no piloto automático, vislumbrou a placa à esquerda. Rodou ainda algumas dezenas de metros, até que lhe bateu a centelha desafiadora de fazer incursões por ali. Com um nome como aquele, o lugarejo haveria de ter algo de instigante. Fez o contorno, ouvindo o som dos pneus no ermo, e foi devagarinho se aproximando. Parou, ajeitou o bigode, riu ao pensar nas possibilidades e tomou a estradinha de terra. Em pouco tempo desembarcaria no tal Buritis das Mulatas. Uma artéria principal, duas vias laterais, sete perpendiculares. Gostou do que viu. O casario ordenado, cavalos amarrados nos mourões da pracinha, nenhum muro. Sondou aqui, acolá, bebeu um café, fez apostas na sinuca, travou uma dúzia de diálogos despretensiosos, e se decidira: muito prazer, Zaqueu Andrada, o médico ginecologista que o governo prometera. Foi saudado dia seguinte com banda, discurso das lideranças locais, benção do padre, foguetório. E incentivou uma rotina de consultas, especialmente entre as mulheres mais jovens. Perdeu a conta da coleção de coxas torneadas que pousaram sobre os lençóis do consultório. E dos cheiros povoando a sala. Odor fresco de mulatas, como sonhara. Todas com seios em sentinela, o chocolate se encontrando com o rosa, num contorno de pura exuberância. Simulou exames, tateando jeitoso aquelas carnes. E, noutra ponta, não fazia cerimônia em despachar as velhotas da porta mesmo. Argumento simples: se já haviam resistido até aquela idade, dispensavam minúcias, sobretudo as tão delicadas. Partiam, porém, com recomendação expressa de que encaminhassem as filhas tenras, estas sim, necessitadas de um olhar mais apurado. A elas pedia que contassem, em segredo, dos demônios que devoravam seus desejos, tangendo ali pelas bordas do baixo ventre, roncando a nuca, mergulhando às nádegas salientes. Ouvia, teatralizava ares de doutor Freud, e, às que cediam, consumava amores. Hálito marcante de conhaque combinado ao charuto nacional enumerando declarações desconexas aos ouvidos ainda virgens de sedução. Capitaneou seus dias assim no remanso, até dois acontecimentos simultâneos tirarem-lhe o chão. A gravidez de Florinda, que passara por suas mãos e cama. Ele mesmo cuidou, mantendo a clandestinidade paterna, de convencer a família a que não se livrassem do bebê. Representando, invocou o juramento em defesa da vida que contava ter feito ao ser diplomado. Os parentes se renderam, mas sob uma condição. A de que um médico de confiança - e os olhos foram se dirigindo a ele - fizesse o parto. Virgem santa, jamais sentira medo em toda sua existência, a nesse instante pernas e coração se abalavam. Prometeu. Meses à frente, era Zequeu uma parteira da região amparando a cabeça da menininha. Nada lhe escapou da circunstância. Os sons, os sentidos. São aqueles olhos pequeninos, vivos, do que se recorda agora, quando, noutra cena, o delegado lhe pergunta sobre culpas. Ajeita respiração, bigode, sacode os ombros e estima que talvez não fosse mau negócio um estágio na prisão. A que se acostumasse logo com a atmosfera endiabrada, porque seria longo, muito longo seu futuro plantão no inferno. Nota do Editor: Eduardo Murta é jornalista, autor de "Tantas Histórias. Pessoas Tantas", livro lançado em maio de 2006, que reúne 50 crônicas selecionadas publicadas na imprensa. É secretário de Redação do jornal Hoje em Dia, diário de Belo Horizonte. Já teve passagens também pelos jornais Diário de Minas e Estado de Minas, além de Folha de S.Paulo e revista Veja. É um dos colunistas do Hoje em Dia, onde publica às quartas-feiras.
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