Modéstia não era exatamente peculiaridade em Juju. Ao contrário, esbanjava convencimento. Em parte, justo. Como o orgulho pelos lábios que transpiravam sensualidade, o desenho insinuante da cintura e os seios generosos convidando a miragens sem fim. Olhos de gata no cio, pernas alongadas... Acabou por levar a sério a frase ouvida aos 12 anos, por mera cortesia: "Essa menina é uma princesa". Foi nessa toada que veio moldando suas convicções. Acreditava, literalmente, que o universo estava a sua disposição. E forjou-se figura assumidamente esnobe. Rainha da Pipoca, Rainha da Cocada Branca, Bonequinha do Colégio. Os pais haviam estranhado, beirando a adolescência, a lista de pedidos enumerados por ela. Leite nobre, de cabra, em lugar das tradicionais vaquinhas. Pijamas em seda, a que se aposentasse o velho algodão. E um palio sobre a cama, a que lhe emprestasse ares imperiais. Filha única, xodó alimentado sem reprimendas, trataram de atendê-la. Assim, se surpreenderam por demais com o presente tão singelo eleito para aquele Natal: ela queria tão-somente conhecer o mar. Mas ficariam estupefatos com a razão elencada. Mais: tiveram até medo ao cruzarem os olhares circunspectos de preocupação. A garota dizia simplesmente que os oceanos ganhariam sentido de existência se tivessem a honra de beijar-lhe os pés. Já julgavam que era caso para médico. A índole maternal, porém, acabou por aplacar qualquer reação que soasse a injustiça. Que esperassem um pouco mais, crianças eram mesmo daquele jeito. E rumaram ao litoral. Juju, à praia, deu cinco passos apenas. Viu a maré ao longe e disse que aguardaria a vazão, a que as águas se apresentassem a ela. Voltou ainda mais soberana. Aos que não o sabiam, na escola, demandou que a partir de então fosse tratada como Juju, Deusa dos Mares. Era só uma fase crítica, estimavam os pais. Os queixos desabaram na contraprova, a convocação feita às pressas pela diretoria. A doce filhinha esbofeteara o menino Turíbio, as mãos imitando portinholas de salão de faroeste, porque ele se recusara a chamá-la de Lady. E tudo diante dos colegas de classe. Ali passara dos limites. Sem remédio para seu gênio, terminou transferida. Foi sob esse batismo de fogo, a contragosto, que aportou em estabelecimento de freiras. Rigorosíssimo. Admiravam seus largos conhecimentos, se davam por felizes com a contribuição sem limites da família à instituição, daí fazerem vista grossa a sua petulância. Toleravam, até o dia em que declarou taxativamente ser incompreendida. Como o fora Joana D’Arc. E que o Deus sobre o qual falavam era dela confidente, provara de seu chá e com ele travava impressões diárias sobre o mundo. Um tanto críticas, se queriam de fato saber. Acabou posta portão afora. E nem mesmo os familiares agora lhe emprestariam guarida. Recebeu sua parte da herança num cheque em que os zeros faziam fila extensa e partiu sem olhar para trás. Mirem e a verão inconfundível, vinte e poucos anos, gargalhando no hall da agência de modelos. Capa de revistas nos quatro cantos do planeta. Cerejas frescas e uvas finas levadas à boca por mãos que não as dela. E um batalhão de gente massageando-lhe os pés, hidratando-lhe a pele, incensando-lhe o ego. Tudo rigorosamente dentro do script que previra anos atrás. Era, enfim, uma rainha. Nas sombras, contudo, se permitia umas escapadelas. Metia-se em roupas de segunda, um boné que lhe disfarçasse a cabeleira desconcertante, óculos protegendo as maçãs do rosto. Irreconhecível. Dispensava limusine e motorista, e um táxi a guiava, creiam, ao Mercado Central. Lá pedia o bife acebolado com jiló, feito na chapa, e comido de pé, aos moldes da simplicidade do lugar. Por vezes, variava. Tomava o rumo do Bairro da Saudade, a rever a carne-de-sol do Baiano, ou ao Prado, para o pé-de-porco nas mesas de plástico do Bigode. Ela incógnita, claro. Porque era roteiro que aprendera com os pais e jamais se dobraria a admitir que admirava coisas assim tão comezinhas. A não ser, naturalmente, que virassem moda. Com esforço supremo, travando o estômago, experimentara buchada de bode desde que soubera de sua inclusão em cardápios franceses. E adotara sandálias tupiniquins de dedo, um sucesso no mercado dos Estados Unidos. Mas não tinha lá muita disposição para fraquejar. Encomendara, em testamento, caixão em madeira nobre, entalhes a ouro e brilhantes cravejando as bordas. A que soubessem, mesmo noutra dimensão, com quem estariam falando. Ora, pois! Nota do Editor: Eduardo Murta é jornalista, autor de "Tantas Histórias. Pessoas Tantas", livro lançado em maio de 2006, que reúne 50 crônicas selecionadas publicadas na imprensa. É secretário de Redação do jornal Hoje em Dia, diário de Belo Horizonte. Já teve passagens também pelos jornais Diário de Minas e Estado de Minas, além de Folha de S.Paulo e revista Veja. É um dos colunistas do Hoje em Dia, onde publica às quartas-feiras.
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