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Crônicas
27/02/2008 - 07h21
Sá Augusta perfumou até os sonhos
Eduardo Murta
 

Tardes de segunda são tempo de festa quase menina para Sá Augusta. Percebam como se avizinha mais e mais do contentamento à medida que os ponteiros do relógio avançam. O pêndulo em balé despretensioso no maciço de jacarandá. Era relíquia que pertencera ao avô e a acompanhava em cumplicidade peculiar. Embora máquina fosse, o tratava como estivesse diante de um íntimo confidente.

Eram ela e ele à sala, num diálogo ímpar. Sá Augusta contando de como se distanciara das amigas, igualmente octagenárias, e do conforto que nele descobrira. Mirava longo, ele perto dos horários redondos, e inquiria, voz de veludo: "Você me ama de verdade?". No badalo, a caixa de ressonância lhe chegava como um sim em dízimas periódicas.

Por isso se sentia agora em sutil dilema. Conhecera Vitorino, Natal passado. Encontro fortuito de mãos ao pratinho de castanhas, se apresentaram, e desde então o entardecer das segundas-feiras já não é mais o mesmo. Dócil, ele propôs-lhe o passar de tempo sem a goteira dos minutos intermináveis a cravejar-lhe. Ao revés. Teria massagem nos pés, unhas gentilmente pintadas e cabelo renovado a cada semana. Foi brotando um sentimento tão bom, que literalmente lhe parecia o paladar de eternidade.

Viera uma primeira vez, uma segunda... uma nona. E lá estava ela, se afogando em ansiedade, incendiando calendários, a que a data se aproximasse veloz. Fazia repetidas incursões à janela, a conferir se era Vitorino quem subia a rua. E, gesto de sedução, ensaiando os movimentos ao espelho, variando os vestidos, experimentando, até se convencer, a coleção de colares.

Ah, e como ensaiava aromas. Se embonecava, a maquiagem sete tons acima da discrição, a cristaleira de perfumes embebedando-lhe o corpo. Se transformava em rainha dos cheiros para receber o querido. Um tipo magro, delicado, gestos finos. Metade da idade dela. Como Sá Augusta, ligeiramente solitário. Quando se encontravam, ambos assim cumpriam, mutuamente, ritual que lembrava sopros contra o esquecimento.

Importava pouco se os parentes enxergavam estranheza naquilo. Ela viúva, com saldo em banco, lúcida, se abrindo a alguém que chegara ontem em sua vida. Não entenderiam mesmo. Porque a relação carregava ainda mais ortodoxia, se quisessem qualificar dessa forma. É ao relógio que ela confessa, numa daquelas noites de confidência... Sussurrando, as mãos em pose de concha: "Está preparado para ouvir?!?... Sim?!?!... Vitorino é homossexual". Tremeu ao falar. Foi logo afastando, porém, qualquer vício de culpa, se o que desejava era tão-somente partilhar calor de convivência.

E como foram ricas aquelas tardes de segunda. O cenário para o chá armado à mesa, as gargalhadas longas hidratando a alma. O corte reinventando os humores do cabelo e da face. Sá Augusta se perguntava agora se seria prudente fazer aquela proposta. Queria, do fundo do coração. Ainda que temesse quebrar encantos, destroçar algo que, de tão harmônico, soava-lhe ao feitio de miragens.

Tudo era belo, de fato, mas pagaria a conta do risco. Naquele dia, então, lançou a frase, meio que a esmo, no momento em que as xícaras baixavam aos pires: "Durma comigo". Flagrou tremor leve às mãos de Vitorino, e uma surpresa que o fazia converter-se em concha, acenar com distanciamento. Foi que uma atmosfera de incerteza tomou o ambiente. E só o tic-tac vindo do velho jacarandá se ouvia. Ele a abraçou em silêncio, ambos apartando choro. Nada disse. Foi se recolhendo em direção à porta.

Nessa noite, Sá Augusta evitou a cama. É ela, percebam, ao pé do relógio, chorando baixinho. Pudesse, poria os badalos do tempo ao avesso. Evitaria ter despedaçado aquele sentimento de pés no riacho. Mas já se fazia tarde, tarde demais.


Nota do Editor: Eduardo Murta é jornalista, autor de "Tantas Histórias. Pessoas Tantas", livro lançado em maio de 2006, que reúne 50 crônicas selecionadas publicadas na imprensa. É secretário de Redação do jornal Hoje em Dia, diário de Belo Horizonte. Já teve passagens também pelos jornais Diário de Minas e Estado de Minas, além de Folha de S.Paulo e revista Veja. É um dos colunistas do Hoje em Dia, onde publica às quartas-feiras.

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