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Crônicas
01/03/2008 - 12h24
Eu, um anacrônico
André Falavigna
 

Sei bem que já os incomodei demais com essas histórias de palavras que foram abandonadas, expressões proibidas pelo tempo, vocábulos mágicos adotados pela moda e subscritos sem reflexão pela imbecilidade contemporânea. Infelizmente, não esgotei a matéria. Pode parecer que estou me repetindo por falta de assunto, mas acreditem: não é nada disso. A alegação de falta de assunto é só mais um desses vícios aos quais nos submetemos dada a grande insistência com que nos oferecem o produto ali, na porta da escola. Vencem-nos pela insistência; a gente fraca um dia decide experimentar e daí ao hábito é só outro passo leve, adormecido. Se me repito, o faço por pura obsessão, e o valor que atribuo a essa ordem de motivação talvez seja a melhor herança que anos e anos de leitura de crônicas futebolísticas assinadas por Nelson Rodrigues me proporcionaram. A pessoa sem obsessões não é confiável, é menos humana. Não é possível que alguém bem intencionado atravesse os dias sem identificar nenhuma constante contra a qual atirar seus esforços.

Digo tudo isso por conta da Minancora. Lê-se como se estivesse escrito Minâncora, mas o fabricante diz que se escreve Minancora. Pouco importa. Recentemente, sofri com um terrível pé-de-atleta. Não, não cruzei com Rycharlison por aí. Tratou-se de micose, e das insistentes. Nada resolvia o problema, apenas o atenuava. Inúmeros princípios ativos foram empregados, sem sucesso. Até que a Jovem Esposa lembrou-se da Minancora. Tudo sanado, do dia para noite. O mesmo para meu dedo inflamado (a extremidade do segundo quirodáctilo dorsal esquerdo, para ser mais preciso). Sim, no Cambuci se usa cortar as unhas. Da mão, pelo menos. Os que não as roem, claro. E, vez, por outra, sai um bifinho. Sim, de novo. Nós, os palmeirenses, também temos cutícula. Certamente menos trabalhada do que a dos são-paulinos, mas nem por isso menos cutícula. E elas também se podem ferir quando nos vemos obrigados a cortar as unhas.

Aconteceu comigo, e não conheço outro remédio que não esperar a coisa atingir limites insuportáveis para, somente aí, fazê-la voar pelos ares numa horrenda explosão de pus e calor, mediante a aplicação de uma agulha quente. É quase prazeroso, mas está longe de ser compensador diante das uma ou duas semanas em que tudo nos incomoda, tudo fica agudo. A não ser que você tente Minancora. Descobri que a melhora é imediata e quase milagrosa. Inspirado pelo caso da frieira, experimentei no dedo ferido e funcionou que foi uma beleza. Desde então, estou decidido a estender minhas tentativas a todos os problemas superficiais que vierem a me acometer. Desconfio que até gangrenas possam ser evitadas. No futuro, se tudo correr bem, vamos ver se ingerir Minancora pode aliviar a azia, se inalá-la pode liquidar com a asma e se aplicá-la à glande (no meu modesto caso, enolme) produz os mesmos efeitos da cantaridina. Quem viver, verá.

O episódio Minancora me fez relembrar, saudoso, de antigos produtos e antigas atividades, extirpados da vida nacional pela onda de modernismo compulsivo. O modernismo compulsivo é capaz de admitir o assassinato como forma de protesto social do lupemproletariado, o analfabetismo como enzima libertadora dos anseios democráticos dos miseráveis e o aborto como microcirurgia estética. Mas jamais conseguirá enxergar, na garrafa de Crush que refresque algum Juventus e Ferroviária na manhã de sábado na Rua Javari, qualquer coisa menos grave do que o achaque ao patrimônio nacional associado à exploração do trabalhador brasileiro, à degradação da saúde do populacho pelo poder deletério do açúcar refinado e aos arranjos da cartolagem corrupta que ignora os malefícios da prática esportiva no calor matutino da Mooca, tudo isso sob o signo de uma propaganda totalmente démodé.

Eu sei, cada tempo que chega parece trazer em seu bojo mais transtornos do que o tempo que já se foi, repleto de soluções. Na maior parte das vezes, é só isso mesmo: aparência. Há poucas décadas, as mulheres não votavam. Nem os analfabetos. Nem os pobres. Há poucas décadas, havia países que entregavam seu progresso material à escravização de dissidentes políticos. Hoje essas situações são muito mais exceção do que regra. Mas a proscrição das idéias que lhes conferiam substância do universo das concepções decentes não é fruto da descoberta e aplicação de preceitos modernos, e sim a vitória incontestável de valores milenares. Milenares, senhores. Mais antigos que o Continental sem filtro, mais vetustos que o Óleo de Fígado de Bacalhau Emulsão de Scott, mais remotos que as garrafas de Grapette.

É por isso que desconfio de tudo aquilo que é realizado em nome da modernidade, da atualidade, da superação de princípios tidos por obsoletos. Por extensão, não vou com a cara de modelos novos de quase porcaria nenhuma, desde roupas até carros, passando por receitas de pratos tradicionais, e muitíssimo menos tolero palavras novas para coisas velhas. Velho, aliás, é velho. Puta é puta. Preto é preto, branco é branco, gordo é gordo e feio é feio. Nem velho, nem puta, nem preto, nem branco, nem gordo e nem feio são necessariamente ofensas, em si ou por si mesmas. O sujeito que imagina que as palavras possuam significado desprendido das possibilidades conotativas do contexto e das intenções de quem as profere não precisa de mais e novas palavras - precisa é voltar para a escola, de preferência para uma tão antiquada que ainda lance mão da palmatória, do chapéu de burro e do nariz na parede.

Muita gente utiliza a palavra "anacrônico" sem dela captar o verdadeiro significado: a imensa maioria dos defensores do "progresso" reputa ao anacronismo as qualidades do que é antiquado. Essa é somente uma das acepções da palavra, e é de longe a menos direta. Basta ao objeto ser contrário à cronologia para que dele já se possa dizer que é anacrônico. Alguém que viesse do futuro e nos anunciasse as maravilhas que nos esperam seria tão anacrônico como o sujeito cuja profissão consistisse em caminhar pelos corredores de um cinema, lanterninha em punho.

Compreendam-me: às vezes, imagino o tal Homem do Futuro, todo de branco, careca, meio andrógino, meio veado mesmo, chegando e nos dizendo, melífluo, que em seu lar não há mais tumores de nenhuma ordem causados pelo cigarro, porque o hábito de fumar foi completamente extinto. Daí, ele distribui santinhos do São Paulo FC e volta para casa. Depois, penso no preço que toda essa melhora deve ter cobrado - e ele não pode ser menor do que aquele que pagamos pelo advento, sei lá, da televisão, cuja tecnologia eliminou muitos dos terríveis e mortais problemas oriundos do fato do planeta ser enorme.

Gosto de televisão, sou asmático e não posso com cigarro.

Mas que dá uma bruta vontade de começar a fumar amanhã mesmo, isso lá dá.

Ah, se dá.


Nota do Editor: André Falavigna é escritor, tendo publicado dezenas de contos e crônicas (sobretudo futebolísticas) na Web. Possui um blog pessoal, ofalavigna.blog.uol.com.br, no qual lança, periodicamente, capítulos de um romance. Colabora com diversas publicações eletrônicas.

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