Não, não estou falando de Abrão ou de Abrahão. Ainda que se possa dizer que falo de um patriarca, nossa personagem não deu origem ao povo escolhido, não é bíblica e muito menos é judia. Meu Abrão é, salvo engano, descendente de libaneses, certamente está vivo e, Oxalá, bem. Trata-se de um professor de matemática do Colégio de São Bento. Julgo que já esteja aposentado. É absolutamente impossível alguém ter estudado no velho e bom São Bento entre os anos de 1955 e, pelo menos, 2000 e não saber do que estou falando. Mais do que isso: se vierem a ler o que escrevo agora, todos, sem exceção, saberão que terei contado nada menos do que a verdade, por mais inusitada que essa possa parecer. A ela. A imensa maioria dos leitores há de se recordar de professores que lhes marcaram a vida. Muitos poderão dar testemunhos de mestres cuja interferência modificou, para melhor, o rumo de diversas existências, geração após geração. Não tenho dúvidas de que todos têm suas razões e de que todos esses educadores são merecedores dos mais altos votos de estima e consideração. Ainda assim, é minha obrigação alertar tais leitores: não é bem exatamente sobre algo assim que versam estas poucas linhas. Ah, mas não é mesmo. Minha história com o professor Abrão nasceu alguns anos antes de eu me tornar seu aluno. Ambos os meus irmãos mais velhos o foram antes de mim. Em breve, os senhores entenderão que a distância no tempo entre uns e outros alunos do professor não implicou, jamais, significativas diferenças de ordem pedagógica. Conheci pessoas a quem Abrão lecionara trinta anos antes de me dar esse prazer, e posso lhes garantir que, em essência, os métodos eram baseados nos mesmos dois itens de sempre: a) um caderno de exercício no qual se anotavam a matéria e, sobretudo, as lições de casa cuja execução era conferida a cada aula seguinte e cuja pontualidade na entrega consistia em metade da nota e b) Uma prova por bimestre baseada na matéria acumulada do ano: eis a outra metade da nota. Nada de grandes exposições teóricas acerca dos fundamentos da matemática ou da aplicação prática dos recursos ensinados. Tome lá cerca de três mil exercícios por ano e veja se não aprende a resolvê-los. Antiquado? E que importa? Estamos falando do colegial, quando muito do ginásio. Ninguém abandonou a engenharia por conta disso. E, se você demonstrasse interesse e mesmo talento, não veria lhe negarem a atenção adequada. Que fique registrado. Partamos ao que interessa. A memória do Professor Abrão sempre foi prodigiosa. O homem era capaz de reconhecer na caligrafia de seus ex-alunos, homens feitos e, muitas vezes, pais dos então alunos, os garranchos do molecote impertinente de trinta anos atrás para, assim, identificar o autor de um bilhete. Tome isso por medida para imaginar o que era capaz de fazer com nomes, sobrenomes e fisionomias, tudo disponível para associação. Desse modo, quando fez a chamada do distante e já amarelecido 1º CD de 1990, parou no Falavigna que o André Luiz jogava para o número sete, matrícula 711, interrompeu os trabalhos e me chamou ao tablado. Pequenino, calvo, sempre de avental branco a proteger o impecável terno, aquele improvável e simpático sósia de Mister Magoo (novo, ele era o perfeito jovem Magoo - vi numa foto do ano de sua entrada no Colégio que, mais tarde, ele mesmo me mostrou) desejava esclarecer duas ou três coisinhas. A fala rápida, a voz nasalada e os gestos contidos travaram comigo o seguinte diálogo, óculos levantados: - Falavigna, não é isso? André Falavigna. Irmão do outro, já dei aula, o Maurício, é isso? - É, professor. - Então, é irmão também do Raphael, tem aula comigo ainda, você sabe. Santa mulher a sua mãe. Santa mulher. Porque o primeiro era vagabundo, irrecuperável. Bandido mesmo. Bandidão. Vagabundo. O outro, bom... O outro é pior. Cafajeste, vagabundo mesmo, quadrilheiro. Não quer nada com nada, nada com nada mesmo. Pilantra, safado. Santa mãe a sua. Você deve ser vagabundo, também. É vagabundo? A gente nota logo que é vagabundo. Vocês puxaram alguém e não é a vossa mãe, santa mulher que se vê obrigada a comprometer o orçamento de Natal porque nenhum dos três presta, está óbvio. Gasta tudo em vela nas orações pela aprovação dos vagabundos, a pobrezinha, porque vocês são uns vagabundos. O Maurício, pelo menos, entrou na USP, que é gratuita. Um vagabundo a menos para fazer gastar a cera. Mas, vocês dois, vocês dois estão na ativa ainda e são perigosos, estou de olho nos dois, maus elementos. Principalmente em você. Senta lá, vagabundo, e seja bem-vindo. Aqui não discrimino ninguém. Pode ir. Poderia escrever um romance se contasse tudo que me lembro daquele homem. Não é o caso, por enquanto. Vou ficar numa historieta emblemática, tão boa quanto muitas outras que outros devem ter vivido. Terá sido meu pequeno legado a alguns dias felizes. Quem sabe, no futuro, eu esteja pronto para aproveitar o material todo. Posso jurar que em nenhuma das cerca de 400 vezes que nos cruzamos entre aulas regulares, de reforço ou de recuperação o Professor deixou de solicitar meu caderno para verificar se eu havia feito ou não a lição. O caso é que, se você não tivesse feito todos os exercícios, sem os pular e pela ordem, levava ponto negativo. Metade de sua nota, provinda do caderno e que saía de 10, era baixada em um ponto ao mais mínimo sinal de deslize, sempre impossível de se camuflar. Creiam-me: invariavelmente, havia modos de zerá-la. Abrão possuía alguma espécie de ubiqüidade, se é que existe mais de um tipo. A tentação de simplesmente copiar os exercícios do caderno de quem os houvesse feito era enorme. Muitos se dedicavam às cópias, todos os dias, em diversos lugares: em casa, na rua ou no Colégio. A verdadeira "indústria do plágio", segundo o próprio Professor a descrevia. Todavia, se qualquer dos falsários fosse pego no pulo, ambos, autor legítimo dos exercícios e fraudador direto (isso quando não era o caso de se copiar de outro copiador) eram punidos com a aplicação de inúmeros pontos negativos. Por isso, sempre que era possível precaver-se, me precavia. Alguns dos meus mais sofisticados recursos envolviam tanta complexidade logística que teria sido mais fácil simplesmente fazer os exercícios. Tinha grande amizade com a melhor aluna da sala. Afora as indubitáveis qualidades intelectuais da garota, incomuns até em melhores da sala, ela era ainda tão estranha que acabava sendo muito, muito atraente. O caso é que, certa feita, fui da minha casa, no Cambuci, até a estação Santana do metrô, isso lá pelas 06:00 da matina, a fim de obter o caderno da moça e reproduzi-lo com urgência, no meu. A aula de matemática seria a primeira, as 07:15, e por qualquer motivo aqueles pontos negativos me pareciam mais prejudiciais do que nunca. Célere, iniciei a transcrição ali, nos trens mesmo, perturbado apenas pela presença pendular dos enormes cabelões eqüinos e castanhos de minha companheira de viagem, calada ao meu lado, imóvel, meio inconformada com a situação e espremendo ainda mais os dois buraquinhos frios que ocupavam-lhe bem o espaço normalmente destinado aos olhos - que, coisa espantosa, estavam lá e não se podia nunca os ver. Pois muito bem. Entre as estações Sé e São Bento, eu arrematava a última cópia. Os dois cadernos no colo, um em cada magra coxa. Caneta em punho. Assim que soou a sirene de abertura das portas, dando conta da chegada, preparei-me para levantar, satisfeito com a façanha, quando duas pequenas mãos, limpas e brancas, surgiram por cima de meus ombros e, rápidas como coelhinhos, tomaram-me os dois cadernos das mãos. Era Abrão, bastante indiferente, aliás. - Copiando lição? Copiando lição. Ahá. Pooonto negativo. E saiu. A porta fechou-se atrás dele e fomos parar, eu e a espantada amazona (sim, além de tudo isso), na estação Liberdade. Anos depois, voltaríamos à região envolvidos em situações muitíssimo mais curiosas. Mas essa é outra história. Naquele dia, chegamos atrasados à aula. Tempos curiosos: entramos juntos na sala. A vergonha, em nossos junhos, serve para unir. Basta chegar agosto para separar. Em dezembro, penso que não deva fazer a menor diferença. Abrão era paraninfo todos os anos, ou quase. Os bons elementos o respeitavam e queriam-lhe bem. Nós, os vagabundos, o amávamos muitíssimo. Da última vez que o vi, há coisa de três anos, ainda não havia envelhecido de verdade. Há mais de duas décadas, quando meu irmão foi aprovado para fazer História na USP, resolveu visitar o São Bento. Foi procurar o Professor numa sala. A boa notícia, coisa rara por ali naquela época, chegara antes, é óbvio. Mal o orgulhoso ex-aluno entrou na sala, o homenzinho estendeu-lhe o braço, o puxou par si e disse solerte, exibindo-o à classe: - É assim que se faz, viu seus vagabundos? Agora, Maurício, vai lá à USP e mostra pra eles lá. Mostra pra eles, viu? Nota do Editor: André Falavigna é escritor, tendo publicado dezenas de contos e crônicas (sobretudo futebolísticas) na Web. Possui um blog pessoal, ofalavigna.blog.uol.com.br, no qual lança, periodicamente, capítulos de um romance. Colabora com diversas publicações eletrônicas.
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