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Crônicas
09/03/2008 - 15h06
A Lenda de Abrão
André Falavigna
 

Não, não estou falando de Abrão ou de Abrahão. Ainda que se possa dizer que falo de um patriarca, nossa personagem não deu origem ao povo escolhido, não é bíblica e muito menos é judia. Meu Abrão é, salvo engano, descendente de libaneses, certamente está vivo e, Oxalá, bem. Trata-se de um professor de matemática do Colégio de São Bento. Julgo que já esteja aposentado. É absolutamente impossível alguém ter estudado no velho e bom São Bento entre os anos de 1955 e, pelo menos, 2000 e não saber do que estou falando. Mais do que isso: se vierem a ler o que escrevo agora, todos, sem exceção, saberão que terei contado nada menos do que a verdade, por mais inusitada que essa possa parecer. A ela.

A imensa maioria dos leitores há de se recordar de professores que lhes marcaram a vida. Muitos poderão dar testemunhos de mestres cuja interferência modificou, para melhor, o rumo de diversas existências, geração após geração. Não tenho dúvidas de que todos têm suas razões e de que todos esses educadores são merecedores dos mais altos votos de estima e consideração. Ainda assim, é minha obrigação alertar tais leitores: não é bem exatamente sobre algo assim que versam estas poucas linhas.

Ah, mas não é mesmo.

Minha história com o professor Abrão nasceu alguns anos antes de eu me tornar seu aluno. Ambos os meus irmãos mais velhos o foram antes de mim. Em breve, os senhores entenderão que a distância no tempo entre uns e outros alunos do professor não implicou, jamais, significativas diferenças de ordem pedagógica. Conheci pessoas a quem Abrão lecionara trinta anos antes de me dar esse prazer, e posso lhes garantir que, em essência, os métodos eram baseados nos mesmos dois itens de sempre:

a) um caderno de exercício no qual se anotavam a matéria e, sobretudo, as lições de casa cuja execução era conferida a cada aula seguinte e cuja pontualidade na entrega consistia em metade da nota e

b) Uma prova por bimestre baseada na matéria acumulada do ano: eis a outra metade da nota.

Nada de grandes exposições teóricas acerca dos fundamentos da matemática ou da aplicação prática dos recursos ensinados. Tome lá cerca de três mil exercícios por ano e veja se não aprende a resolvê-los. Antiquado? E que importa? Estamos falando do colegial, quando muito do ginásio. Ninguém abandonou a engenharia por conta disso. E, se você demonstrasse interesse e mesmo talento, não veria lhe negarem a atenção adequada. Que fique registrado. Partamos ao que interessa.

A memória do Professor Abrão sempre foi prodigiosa. O homem era capaz de reconhecer na caligrafia de seus ex-alunos, homens feitos e, muitas vezes, pais dos então alunos, os garranchos do molecote impertinente de trinta anos atrás para, assim, identificar o autor de um bilhete. Tome isso por medida para imaginar o que era capaz de fazer com nomes, sobrenomes e fisionomias, tudo disponível para associação. Desse modo, quando fez a chamada do distante e já amarelecido 1º CD de 1990, parou no Falavigna que o André Luiz jogava para o número sete, matrícula 711, interrompeu os trabalhos e me chamou ao tablado. Pequenino, calvo, sempre de avental branco a proteger o impecável terno, aquele improvável e simpático sósia de Mister Magoo (novo, ele era o perfeito jovem Magoo - vi numa foto do ano de sua entrada no Colégio que, mais tarde, ele mesmo me mostrou) desejava esclarecer duas ou três coisinhas. A fala rápida, a voz nasalada e os gestos contidos travaram comigo o seguinte diálogo, óculos levantados:

- Falavigna, não é isso? André Falavigna. Irmão do outro, já dei aula, o Maurício, é isso?

- É, professor.

- Então, é irmão também do Raphael, tem aula comigo ainda, você sabe. Santa mulher a sua mãe. Santa mulher. Porque o primeiro era vagabundo, irrecuperável. Bandido mesmo. Bandidão. Vagabundo. O outro, bom... O outro é pior. Cafajeste, vagabundo mesmo, quadrilheiro. Não quer nada com nada, nada com nada mesmo. Pilantra, safado. Santa mãe a sua. Você deve ser vagabundo, também. É vagabundo? A gente nota logo que é vagabundo. Vocês puxaram alguém e não é a vossa mãe, santa mulher que se vê obrigada a comprometer o orçamento de Natal porque nenhum dos três presta, está óbvio. Gasta tudo em vela nas orações pela aprovação dos vagabundos, a pobrezinha, porque vocês são uns vagabundos. O Maurício, pelo menos, entrou na USP, que é gratuita. Um vagabundo a menos para fazer gastar a cera. Mas, vocês dois, vocês dois estão na ativa ainda e são perigosos, estou de olho nos dois, maus elementos. Principalmente em você. Senta lá, vagabundo, e seja bem-vindo. Aqui não discrimino ninguém. Pode ir.

Poderia escrever um romance se contasse tudo que me lembro daquele homem. Não é o caso, por enquanto. Vou ficar numa historieta emblemática, tão boa quanto muitas outras que outros devem ter vivido. Terá sido meu pequeno legado a alguns dias felizes. Quem sabe, no futuro, eu esteja pronto para aproveitar o material todo.

Posso jurar que em nenhuma das cerca de 400 vezes que nos cruzamos entre aulas regulares, de reforço ou de recuperação o Professor deixou de solicitar meu caderno para verificar se eu havia feito ou não a lição. O caso é que, se você não tivesse feito todos os exercícios, sem os pular e pela ordem, levava ponto negativo. Metade de sua nota, provinda do caderno e que saía de 10, era baixada em um ponto ao mais mínimo sinal de deslize, sempre impossível de se camuflar. Creiam-me: invariavelmente, havia modos de zerá-la. Abrão possuía alguma espécie de ubiqüidade, se é que existe mais de um tipo. A tentação de simplesmente copiar os exercícios do caderno de quem os houvesse feito era enorme. Muitos se dedicavam às cópias, todos os dias, em diversos lugares: em casa, na rua ou no Colégio. A verdadeira "indústria do plágio", segundo o próprio Professor a descrevia. Todavia, se qualquer dos falsários fosse pego no pulo, ambos, autor legítimo dos exercícios e fraudador direto (isso quando não era o caso de se copiar de outro copiador) eram punidos com a aplicação de inúmeros pontos negativos.

Por isso, sempre que era possível precaver-se, me precavia. Alguns dos meus mais sofisticados recursos envolviam tanta complexidade logística que teria sido mais fácil simplesmente fazer os exercícios. Tinha grande amizade com a melhor aluna da sala. Afora as indubitáveis qualidades intelectuais da garota, incomuns até em melhores da sala, ela era ainda tão estranha que acabava sendo muito, muito atraente. O caso é que, certa feita, fui da minha casa, no Cambuci, até a estação Santana do metrô, isso lá pelas 06:00 da matina, a fim de obter o caderno da moça e reproduzi-lo com urgência, no meu. A aula de matemática seria a primeira, as 07:15, e por qualquer motivo aqueles pontos negativos me pareciam mais prejudiciais do que nunca. Célere, iniciei a transcrição ali, nos trens mesmo, perturbado apenas pela presença pendular dos enormes cabelões eqüinos e castanhos de minha companheira de viagem, calada ao meu lado, imóvel, meio inconformada com a situação e espremendo ainda mais os dois buraquinhos frios que ocupavam-lhe bem o espaço normalmente destinado aos olhos - que, coisa espantosa, estavam lá e não se podia nunca os ver.

Pois muito bem. Entre as estações Sé e São Bento, eu arrematava a última cópia. Os dois cadernos no colo, um em cada magra coxa. Caneta em punho. Assim que soou a sirene de abertura das portas, dando conta da chegada, preparei-me para levantar, satisfeito com a façanha, quando duas pequenas mãos, limpas e brancas, surgiram por cima de meus ombros e, rápidas como coelhinhos, tomaram-me os dois cadernos das mãos. Era Abrão, bastante indiferente, aliás.

- Copiando lição? Copiando lição. Ahá. Pooonto negativo.

E saiu. A porta fechou-se atrás dele e fomos parar, eu e a espantada amazona (sim, além de tudo isso), na estação Liberdade. Anos depois, voltaríamos à região envolvidos em situações muitíssimo mais curiosas. Mas essa é outra história. Naquele dia, chegamos atrasados à aula. Tempos curiosos: entramos juntos na sala. A vergonha, em nossos junhos, serve para unir. Basta chegar agosto para separar. Em dezembro, penso que não deva fazer a menor diferença.

Abrão era paraninfo todos os anos, ou quase. Os bons elementos o respeitavam e queriam-lhe bem. Nós, os vagabundos, o amávamos muitíssimo. Da última vez que o vi, há coisa de três anos, ainda não havia envelhecido de verdade. Há mais de duas décadas, quando meu irmão foi aprovado para fazer História na USP, resolveu visitar o São Bento. Foi procurar o Professor numa sala. A boa notícia, coisa rara por ali naquela época, chegara antes, é óbvio. Mal o orgulhoso ex-aluno entrou na sala, o homenzinho estendeu-lhe o braço, o puxou par si e disse solerte, exibindo-o à classe:

- É assim que se faz, viu seus vagabundos? Agora, Maurício, vai lá à USP e mostra pra eles lá. Mostra pra eles, viu?


Nota do Editor: André Falavigna é escritor, tendo publicado dezenas de contos e crônicas (sobretudo futebolísticas) na Web. Possui um blog pessoal, ofalavigna.blog.uol.com.br, no qual lança, periodicamente, capítulos de um romance. Colabora com diversas publicações eletrônicas.

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