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Crônicas
11/03/2008 - 17h08
A construção
Risomar Fasanaro
 

Levantou-se do estreito estrado de tábuas sobre tijolos que lhe servia de cama, ainda com pedaços de sonho na cabeça. Um sonho horrível.

Ele com os pés atados em um lago lamacento. Olhava para baixo e via os pedaços de carne boiando no meio da lama. As postas vermelhas inundavam seus pés e quando levantava a cabeça para não ver aquilo, uma nuvem cinza, imensa, caía sobre ele. Acordou sufocado como se todo o ar tivesse escapado do alojamento.

Sentiu o peito apertado, um mau presságio. A mãe dizia sempre que sonhar com carne não era bom, nem com lama, sinal de desgraça. Mas a mãe estava morta e acreditar nessas coisas era ignorância do povo lá de Garanhuns. Muitas vezes os colegas do escritório riam de suas crendices e eles tinham estudo, alguns tinham terminado até a quarta série. E ele o que era? Um ignorante, um coitado de um ajudante de obras, sem nenhuma esperança de melhorar. O dinheiro mal dava para a condução e a marmita, como pensar em estudar?

Calçou as botas de borracha, e tentou tirar os respingos de cimento que a roupa e o rosto guardavam do dia anterior e de tantos outros dias, mas não conseguiu.

Não dava tempo de tomar café. Ainda se dava por feliz de haver alojamento naquela obra, a maioria delas não tinha. Ficava perto da construção, mas ele sempre levantava em cima da hora. Se comesse alguma coisa, chegaria atrasado. Dormia demais. Também... Trabalhando até às dez todos os dias... E o frio? Muito pior que o de Garanhuns.

Será que hoje estaqueariam aquela vala? Araponga vivia dizendo que aquilo era perigoso e o mestre-de-obras, nada. Prometia falar com o engenheiro, mas o doutor ia todos os dias lá, inspecionava tudo e era como se nem visse a vala, não mandava os pica-paus fazerem o serviço. Certamente não havia perigo, Araponga é que era um medroso. Vivia contando histórias de outras obras em que trabalhara. De um que despencara do sexto andar, de outro que morrera soterrado em uma vala igual àquela, de outro que...

Araponga era pessimista demais, via perigo em tudo. Então ele não tinha a medalhinha de Nossa Senhora Aparecida que a mãe lhe botara no pescoço desde os doze anos? Mal nenhum lhe pegaria. E além do mais, o doutor não ia saber? Pra que estudara tanto tempo? E o mestre? O mestre não era amigo deles? Eles é que não sabiam de nada, um bando de abestalhados que só sabia beber cachaça, falar de mulher, de futebol e de brigar.

Ah... Mas ele sabia. Sabia sim. Era o melhor servente de obras que ele mesmo tinha visto. Até o mestre dissera isso naquele dia do almoço de comemoração no final da primeira obra em São Paulo. É verdade que o mestre estava meio bêbado, mas bem que os outros ficaram morrendo de inveja. E ele ficou todo ancho. Nem mesmo se lembrava de como tinha terminado aquele almoço.

Agora a construtora tinha crescido muito. Mais de duzentas obras espalhadas pelo Estado. Era o que ouvia dizer... Tinha de caprichar cada vez mais, fazer tudo que o mestre mandasse. Assim teria emprego pro resto da vida.

Por que não tinha deitado de novo e levantado com o pé direito? Logo hoje, dia do seu aniversário... Dezessete anos. Estava ficando homem. Depois do serviço, ia convidar os amigos pra beber uma pinga no bar, perto da construção. Só o Vado, o Araponga e o Curió, que o dinheiro estava curto. Mas queria pelo menos esses três colegas comemorando com ele.

Lembrou do pai. Tão bom se ele também pudesse ter vindo pra São Paulo. Depois que a mãe morrera, vivia sempre tão triste... Talvez no mês que vem desse para mandar buscá-lo. Ele não estranharia o frio, o pai gostava do frio de Garanhuns. A mãe não. Só falava no Recife, nos coqueirais e na areia branca de Estância. Não adiantava o pai dizer que nada daquilo existia mais, que o metrô acabara com aquele coqueiral que havia perto da casa deles, que aquilo era só imaginação dela. Ele, tal qual o pai, não entendia como a mãe podia não gostar de um lugar tão bonito como Garanhuns, com aquele friinho chegando de manhã, gelando o cuscus de milho com leite de coco que Cosma fazia.

Não conseguia entender como ela podia não ver a beleza dos cravos de todas as cores que até as grã-finas vinham do Recife buscar, para enfeitar as igrejas nos terços de maio. Imagine... Sair do Recife, para comprar flores tão longe, só para se exibir, por pura ostentação. Cada uma querendo enfeitar a igreja melhor do que as outras, por pura ostentação. "Deus se servia daquilo?" - perguntava o pai. "Se servia não" - ele concordava.

A mãe vivia triste, reclamava do frio, não saía de casa, nem ver as vaquejadas ela ia. Não se interessava nem mesmo quando ele voltava contando dos cantadores de repentes, do povo todo, das cavalhadas, dos cavaleiros enfeitados de fitas. A mãe agora estava morta, e ele sabia: o motivo maior fora a tristeza. Vez por outra a garoa fina varria seu túmulo e o vento soprava de leve sobre os cravos brancos que ele plantara. De que adiantava se ela não estava ali para vê-los?

O apontador, de cara feia, anotou sua presença no cartão. Ora, ele não estava entrando às sete horas e, ainda mais, sem café? Sujeitinho pernóstico... Só porque tinha um cargo importante... Queria ver se ele ficaria tantos anos na construtora quanto ele. No mês de dezembro ia fazer dois anos que trabalhava lá.

Na vala encontrou Araponga, Vado e Curió. Só Vado era de São Paulo e sujeito bom tava ali. Ficou logo aborrecido. Os pica-paus não tinham estaqueado nada. Araponga estava louco da vida, queria ir reclamar para o mestre-de-obras, mas ninguém deixou. Ele ia terminar sendo mandado embora. Será que não via que ele estava há tanto tempo no emprego porque nunca reclamava de nada? Acharam graça na braveza do amigo, abraçaram-se tentando acalmá-lo e ele cedeu; ficou sem graça e os quatro começaram a trabalhar. Às vezes tinham esses repentes de carinho entre uma discussão e outra. Mas eram lances rápidos que não punham em risco a macheza deles.

Araponga começou a contar a briga entre Paraíba e o doceiro, no dia anterior. Paraíba chegara meio de fogo de manhã e o doceiro estava à sua espera para cobrar o dinheiro de uns doces que ele comprara e não pagara. Ele disse que não pagava e o doceiro se irritou. Ficaram discutindo, a briga foi esquentando ante a torcida dos colegas que, percebendo o clima, rodearam os dois. Em um dado momento, Paraíba jogou uma marreta na cabeça do doceiro e ele caiu, mas no chão encontrou um pedaço de madeira e atirou no devedor. O coitado caiu estatelado no chão feito uma galinha. Não se mexia e o sangue espirrava dos quengos dos dois.

Araponga ria lembrando. Eles tinham ido juntos para o hospital no carro de um rapaz do escritório. O doceiro, ferido, mas muito cuidadoso, completamente esquecido do incidente, amparava Paraíba, cercando-lhe o ombro, enquanto o sangue do outro escorria em sua camisa. Os três riam ouvindo a história e imaginando tudo. Toda semana havia briga. Quando não havia motivo, inventavam.

Voltaram ao trabalho, mas não esqueciam o incidente. Ainda riam quando aquilo aconteceu. Pernambuco só viu a figura de Curió, voando para fora da vala e uma imensidão de terra caindo sobre ele, Vado e Araponga. Num relance ainda lembrou do sonho e das vezes que ouviu a mãe dizer: "as pessoas morrem perto do aniversário..." Ele pulou para junto dos companheiros, em um último gesto, quem sabe para abraçar os companheiros em um adeus final...

Paraíba só voltou a ver os companheiros nas fotos dos jornais do dia seguinte. Disformes como os bombeiros os encontraram. Três corpos abraçados. Uma mistura de lama, carne e sangue, molhada pela garoa.


Nota do Editor: Risomar Fasanaro é jornalista, autora de "Eu: primeira pessoa, singular", obra vencedora do Prêmio Teresa Martin de Literatura em júri composto por Ignácio de Loyola Brandão, Deonísio da Silva e José Louzeiro. Militante contra a última ditadura militar no Brasil.

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