Contos da Mula Manca
Tenho uma amiga que só perde para mim no quesito de descolar loucos e tranqueiras. Mas dessa última vez acho que ela conseguiu me superar. Ela arrumou um bofe que tem um cachorro chamado João. Eu sempre tive antipatia de quem dá nome de gente pra cachorro, mas isso podia até passar. O problema é que o bofe está deixando de ser pessoa física, está virando pessoa jurídica. Não que o namoro com minha amiga esteja tão sério que eles não se largam, naquela base do "só vou se você for", nada disso. O cara anda grudado é com o cachorro. Essa moça é uma moreninha bonita, pequetita, parece uma bonequinha, separada e tem uma filha. Ela faz o gênero um pouco pobre menina rica, daquelas que têm muito dinheiro e falta de um tanque de roupa para lavar - ela às vezes torra minha paciência com comentários sobre a aparência dos próprios joelhos (???) outras bobajadas tão ou mais irrelevantes. Mas é super gente fina, boa pessoa, bom caráter, bom coração e, falando sério, ninguém merece, só as escolhidas para vítimas da vingança da múmia se vêem em tal situação. Pois não é que a boneca contou que, quando chega na casa do bofe, ele fica com o João em um sofá e ela é obrigada a se assentar em uma poltrona ao lado? Da última vez em que foi visitar bofe e João (torço para que seja a última mesmo) levou um esculacho, não do João, mas do cara, e por causa do João. Ela perguntou gentilmente como ele estava - o bofe. Ele respondeu que ela era mal-educada, que deveria perguntar como vocês estão, ou seja, a dupla homem e cachorro. E disse que ele sempre pergunta "como vocês estão?", referindo-se a ela e a filha. Quando ouvi isso descobri que minha amiga está salva, por mais questões de nenhuma importância que habitem sua cabecinha ou seus joelhos. Primeiro porque, apesar de ser muito boa mãe, ela definitivamente não vive de irmã siamesa com a menina, tem sua própria identidade. E filho é ocupação, é gente, tem nome de gente, enfim, é vida. Agora, cachorro com nome de gente e lugar cativo no coração e ao lado do dono, que não abre espaço nem para namorada, sei não. Ou é outra coisa, e lá to eu pensando em sacanagem ou é outra coisa que só um psicanalista ou um cronista mais esperto que essa que vos enche a paciência pode explicar. Virar plural majestático, plural de modéstia, "nós", ou seja, eu e meu cachorro, me cheira pelo menos a grande roubada. Nota do Editor: Maria Ruth de Moraes e Barros, formada em Jornalismo pela UFMG, começou carreira em Paris, em 1983, como correspondente do Estado de Minas, enquanto estudava Literatura Francesa. De volta ao Brasil trabalhou em São Paulo na Folha, no Estado, TV Globo, TV Bandeirantes e Jornal da Tarde. Foi assessora de imprensa do Teatro Municipal e autora da coluna Diário da Perua, publicada pelo Estado de Minas e pela revista Flash, com o pseudônimo de Anabel Serranegra. É autora do livro "Os florais perversos de Madame de Sade" (Editora Rocco).
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