Em dezembro de 2001, Lula já havia disputado três eleições presidenciais e se alinhava no partidor de uma quarta prova. À luz do cenário daquele momento, escrevi um artigo para o Correio do Povo com o título de "Porque Lula empaca", expondo a tese de que Lula fracassaria novamente em virtude dos receios que os radicalismos do discurso esquerdista suscitavam na sociedade. E fiz algumas especulações sobre o que poderia acontecer no Brasil se Lula, eleito presidente, resolvesse agir como agia Olívio Dutra, então governando o Rio Grande do Sul. Entre as muitas possibilidades que a hipótese sugeria, descrevi uma costura diplomática com as FARC, com o exército zapatista, com a Al Qaeda e o Hezbollah, e com todos os movimentos insurrecionais da esquerda latino-americana, uma ruptura com o FMI, a proteção do Exército às tropelias do MST, a substituição de Caxias por Marighella como patrono da instituição, o OP federal, as cartilhas do MEC, o programa Brasil Vivo. O partido do presidente, com tantos cargos à disposição em todo o país, criaria não um clubinho de seguros, mas fundaria o Grupo Cidadania, composto de seguradora, banco e financeira. E - glória suprema! - mandaríamos embora não apenas a Ford, mas a Volks, a GM, a Fiat, a Peugeot, a Renault, a Mercedez Benz, a Toyota e outras que nem elas, dedicadas à mesma atividade, tão decadente quanto à burguesia a que se destinam. Admito. Sou irônico. Mas repito: essa era, no cenário sul-rio-grandense, a perspectiva nacional. Com o mesmo discurso dos três pleitos anteriores, sem uma ruptura com os enferrujados paradigmas que a esquerda brasileira adquirira na metade do século do anterior, Lula empacaria pela quarta vez. Tanto eu estava certo, que Lula, nos meses seguintes, mudou o discurso, divulgou a carta ao povo brasileiro, mandou a DS às favas, trocou de alfaiate, clareou os dentes e se elegeu presidente. Agora, em tudo que importa, cumpre o quarto mandato de FHC. Já confessei: sou irônico. Passaram-se sete anos. Tenho lido, nos últimos dias, artigos e entrevistas expressando surpresa com a popularidade do presidente. Lula resiste a tudo e a todos. Não tem Arthur Virgílio que consiga abalar o prestígio do homem. Ponha quem puser para bater, Lula sai do ringue sem uma gota de suor, sem um hematoma, sem um arranhão. Como se explica esse extraordinário sucesso conquistado junto à opinião pública por alguém que, segundo os parâmetros até agora vigentes, teria muito para se converter num Judas de todas as malhações? As razões são várias e eu já propus uma: Lula cumpre o quarto mandato de FHC e isso está dando muito certo. Mas não é a principal. A principal razão do sucesso de Lula repousa no fato de que ele é a cara do povo brasileiro. Jamais a presidência foi ocupada por alguém tão parecido, em virtudes e defeitos, com o nosso país. Convergem para isso o seu visual, o seu passado, o modo de falar e a capacidade de enrolar (por que você acha que Dona Marisa não sai de perto?). O apreço de Lula pelo que há de mais trivial na música e na culinária coincidem tanto com o gosto brasileiro quanto o seu apreço pelas mordomias e luxos disponibilizados pelas muitas dezenas de cartões corporativos que sustentam, com sigilos de segurança nacional, suas necessidades cotidianas. Ou não é verdade que quem gosta de miséria é intelectual? O Brasil está descobrindo, com Lula, na prática, o que é um Chefe de Estado. É isso. Alguém que sente e expressa a alma nacional num determinado momento. Se Lula não fosse, também, chefe de governo, para fins de direito e de fato, estaria perfeito para o cargo onde se consagra perante a opinião pública. Ele é alguém que entende a maioria do povo e a quem a maioria do povo entende. O governante de fato, meu caro leitor, é uma outra pessoa. Já foi José Dirceu. Agora é Dilma. E até ao agir assim Lula acertou. O problema institucional está no fato de que ninguém elegeu Zé Dirceu e ninguém elegeu Dilma. A reforma política ainda é a pauta faltante. Nota do Editor: Percival Puggina (www.puggina.org) é arquiteto e da Presidente Fundação Tarso Dutra de Estudos Políticos e Administração Pública. Conferencista muito solicitado, profere dezenas de palestras por ano em todo o país sobre temas sociais, políticos e religiosos. Escreve semanalmente artigos de opinião para mais de uma centena de jornais do Rio Grande do Sul.
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