O arrebatamento havia sempre chegado assim de forma trôpega à vida de Marcolino. Nada de aproximações aveludadas. Era, no fundo, como houvesse trespassado fortalezas de cactos. Experimentara dessas provações desde menino. Jamais se esqueceria dos pés descalços nos tempos de escola. Roupas fedendo a curral. A zombaria dos colegas, a dificuldade em se tornar íntimo das letras, decifrar palavras. E o sentimento explosivo quando se deu o encontro dele com aquele outro mundo de significados: caza, avó, dosse, filho, sol, cel... Um turbilhão lhe varrendo, que correra léguas, a que os pais se orgulhassem logo do achado. Era rigorosamente a mesma sensação que lhe visitava anos mais tarde, os pêlos de barba ensaiando desenhos ao rosto, aportando na velha Caeté. Não sabia exatamente o por quê, mas guardava a convicção de que seu curso existencial de alguma maneira se transformaria. A imponência da Serra da Piedade, soberana no namoro com as nuvens, lhe parecia sinal definitivo. E, na descida do ônibus, a silhueta das igrejas e o casario colonial diziam mais. Que era ali o seu lugar. E ele acreditou. Distribuiu saudações de "bom dia" aos que cruzaram seu caminho, sorriu a pencas. Sequer se importou com a tarefa que lhe caberia: lavar, alinhar, maquiar e perfumar os mortos da cidade. Marcolino julgava que, num cantinho qualquer das acontecências, haveria um presente reservado a gente como ele. E, segundo plantão de trabalho, deu com Suzana. Os olhos naufragando num choro compulsivo, viera trazer o pai. Reparou mais nela que no falecido. A maquiagem docemente borrada, o odor de lavanda, orelhas sem brinco, como gostava. E, mais instigante, o decote revelando a geografia generosa dos seios. Pigarreou, desconcertado, às primeiras frases dela. Visivelmente se denunciava. Ele, 17 anos mal-completados. Ela, na fronteira de cima dos 20. Ambos enlaçados por uma circunstância que lhes era nova e assustadora: a morte. Não eram mais que uma soma de desamparos. Mas foi ela, Suzana, saberia o nome mais tarde, quem desabou primeiro. Encaixou-se num pranto órfão aos braços do atendente de funerária. Não estranhem: foi ali que ele se apaixonou. Sem conhecer um milímetro a mais do que vira. O instinto sugerindo que deveria propor namoro. Propôs. A mulher suspirou, o que presumia um sim, depois deu de ombros e acentuou o gesto quase ríspido com as mãos, assinalando que não. Marcolino respeitou o luto, e, semana seguinte, bateu-lhe à porta. Levou flores, uma rapadura. Se encantou com a emoção dela, e desmoronou à revelação sincera: era a puta de grife do lugar. Caso impossível. Retornou três dias à frente, meia garrafa de cachaça no bolso do paletó amarrotado, dizendo que a queria assim mesmo. Suzana tinha nada a perder, e aceitou. Na condição única de que caberia a ela decidir seu destino. Viveram namorico de sofá, mãos entrelaçadas, seguiram capítulos de novelas na tevê. Ele sempre se retirando quando a luz ligeiramente roxa se acendia à porta do estabelecimento. Era hora para profissionais. E pausa a que Marcolino desabasse em choro. E com ninguém dividia angústias, porque zombariam de homem se derretendo por prostituta. Achava que resolveria com noivado. Trocaram alianças. Movimento vão. Suzana seguiu como dama de bordel. Roupão num vermelho de escândalo. Até a noite em que o noivo irrompeu o salão trazendo véu, grinalda, vestido em seda branco. Arrancou dela o cigarro e o martini seco. E a despiu ali mesmo, canção de Cauby Peixoto ao fundo. Meteu-lhe traje de casamento, lascou-lhe beijo longo à boca. A platéia viu, súbito, a lâmina do facão brandindo à meia-luz. Com Marcolino era assim. A vida lhe entregava tudo, ainda que jeito trôpego, ou levava ao menos a metade que lhe pertencia. Nota do Editor: Eduardo Murta é jornalista, autor de "Tantas Histórias. Pessoas Tantas", livro lançado em maio de 2006, que reúne 50 crônicas selecionadas publicadas na imprensa. É secretário de Redação do jornal Hoje em Dia, diário de Belo Horizonte. Já teve passagens também pelos jornais Diário de Minas e Estado de Minas, além de Folha de S.Paulo e revista Veja. É um dos colunistas do Hoje em Dia (www.hojeemdia.com.br), onde publica às quartas-feiras.
|