Ao inferno com a tralha toda. Sim, senhores: é chegada a hora de outra daquelas crônicas em que voa porcaria para tudo quanto é lado. Tudo quanto é lado mesmo. Vamos lá. Não vai ser divertido, mas pode ajudar a matar o tempo. É o seguinte: não sou fã de FHC. Nem sou tucano. Também não acho o DEM o partido dos meus sonhos. Portanto, fico à vontade para dizer algumas coisinhas. A principal delas: o próximo membro do atual governo que, vendo o dito cujo ser pego no pulo, alegar que não há nada demais nisso porque tal pulo é, no máximo, tão alto quanto o dos governos anteriores, notadamente o menos anterior de todos, ora, minha sugestão é que apedrejemos o safado. É, apedreja em praça pública e pronto. Barbárie? OK, estou disposto a negociar. A gente pode usar estrume empedrado, que não deve matar de verdade. Mas não abro mão da publicidade da coisa, até porque não fui eu quem atirou a primeira pedra. Foram os apedrejados da hora. O negócio é assim: se vocês estão roubando, o roubo não fica bonito porque outros já o praticaram antes, mais ou melhor, ainda que duvidemos muitíssimo dessas qualificações, sobretudo do mais e mais ainda do melhor. Se o argumento valesse para vocês, hoje, deveria valer para FHC à época em que vocês o acusavam de safadezas altamente safadas: o homem sucedia nada menos do que Collor (Itamar não conta, ninguém nem se lembra de xingá-lo), cuja antecedência, aliás, garantir-lhe-ia o direito de encarnar Ali Babá. Ora, o governo militar e seus Delfins Netos, governadores e prefeitos biônicos, seguido por Sarney, aquele monstro de decência no trato da coisa pública, precedeu o de Felando, digo, Fernando Collor. Logo, o filho de dona Leda estava habilitado a levantar umas quatro mil Dindas e, no final das contas, fomos todos injustos com o mais sapeca de nossos presidentes. FHC, por seu turno, poderia muito bem ter vendido o país todo a preço de banana, como então se jurava que estava vendendo, e tudo ainda estaria saindo barato. Afinal, todo mundo já havia roubado antes, não é mesmo? Não, não é mesmo. Havia muita ladroagem entre os militares; toda ditadura opta, mais dia menos dia, por institucionalizar a picaretagem. A Nova República aconchegou carinhosamente tal estrutura. Collor era um espertalhão e certamente houve corrupção no governo FHC. As denúncias contra os crimes decorrentes dessa estrutura nojenta e dessa moral fedida, sobretudo após a restauração da liberdade de imprensa, constituem boa parte do noticiário político brasileiro das três últimas décadas. Muitos foram acusados de muitas coisas. Ainda assim, jamais ocorreu a nenhum daqueles réus, responsáveis diretos ou indiretos pelos desmandos, tentar se livrar das acusações, justas ou não, apelando para a suposta universalidade da bandalheira. Essa gente sempre teve, ao menos, a decência de se defender. Sempre tentaram a própria absolvição, nunca lhes passou pela cabeça absolver o crime, quanto mais sob a alegação de que sua prática é consuetudinária. Tenham a santa paciência. Outra coisinha: há um problema com o crime é o próprio crime, não o motivo pelo qual se o comete e muito menos a pessoa que o pratica. Não me venham com conversa mole. Os outros roubavam pelo Mal, nós pelo Bem. Se fosse assim, vocês não teriam denunciado muitos dos eventuais delitos de seus antecessores, e sim se concentrado apenas nos efeitos deletérios de alguns deles. Sequer seria necessário recorrer, por retórica, aos resultados provocados por todas as irregularidades, somados, perniciosos o quanto fossem: um único pecadilho cujo resultado coincidisse com os desígnios do Bem deveria corresponder a uma denúncia a menos, e ponto final. Portanto, se quiserem partir para essa baixaria, antes me ofereçam uma amostra do seguinte: quais os crimes que se deixou de dedurar em, sei lá, Itamar Franco, porque se concluiu que seus resultados seriam benéficos? E nos outros governos? Nenhum que se possa assumir, pois não? Porque sempre tivemos claro que a corrupção é um mal em si, não é assim? Ou existe safadeza boa e safadeza má? Ou a safadeza só o é conforme o ponto de vista, ajustado segundo as finalidades não para as quais se as comete, e sim para as de quem as comete? Haveria aí algum tipo superior de ser humano a quem se concederia a prerrogativa de meter a mão na nossa suada bufunfinha? Acho que não temos ninguém muito disposto a defender isso em público, certo? Então, estamos combinados: o que era porcaria antes e nos outros, é hoje e para nós e será depois e para todo mundo. Vamos esquecer a bobagem dos fins que justificam os meios, fingir que ninguém disse nada e tocar a vida como gente normal. É gatuno? Dança. Ah, mas houve outros gatunos. Não quero saber, não mude de assunto, vá se virar com isso pelos meios e no momento que dizem respeito aos homens de bem, não aos gatunos. Ah, mas era um gatuno bem-intencionado, bonzinho, puro de coração e eficiente, cujas gatunices estão gerando os maiores progressos progressistas. Ora, já combinamos que assim não se pode conversar entre adultos, não é mesmo? Vamos lá: devolva o distintivo, o cartão Visa e vá para o canto da sala. Nariz pra parede. Assim. Quietinho. Opa, não está bom ainda? Há dúvidas? Há sugestões? Muito bem. Aprofundemo-nos. Vamos brincar o seguinte jogo: Vamos fingir, por um momento, que se pode obter coisas boas praticando-se atos maus. Mais ainda: vamos admitir essa baboseira de que “é todo mundo ladrão igual”, como se ela pudesse ser verdadeira e como se, ainda que não o fosse, pudéssemos atribuir-lhe qualquer significado. Compreendo, é difícil. Mas é só por um tempinho, de mentirinha, não precisam ficar com medo de se acostumar. Assim, a gente também pode assumir que o problema não é o roubo, mas quem o pratica. Quando praticado por figuras mal-intencionadas, resulta em coisas inadmissíveis. Quando praticado por figuras bem-intencionadas, resulta em coisas desejáveis e até necessárias. Eu sei, nesse ponto a coisa começa a ficar engraçada e é difícil continuar a brincadeira sem rir. Mas segurem-se. Compensa, no final. Vejam só: tudo isso tomado por verdadeiro, chega-se à conclusão de que os atos bons e maus, em si, não querem dizer nada de bom ou mau, só de atos. Não roubar e com isso impedir a consecução de projetos tidos como bons é mau, roubar para levá-los a cabo é bom. Tudo bem, é forte a tentação de dizer que seria mais fácil produzir o Bem pelas vias regulares e evitar os riscos inerentes ao roubo, mas daí a brincadeira acaba. E ainda não é a hora. A hora só chega quando notamos que o bonito é que, se não há diferença entre a natureza dos meios, somente entre a dos objetivos, e se todos que têm qualquer objetivo têm recorrido sempre aos mesmos meios, dispensando-se de perseguir o que quer que seja sem entregar-se a irregularidades, nós temos que extrair disto pelo menos duas conclusões necessárias: a primeira é que o pessoal que ora nos governa passou anos acusando os rivais de algo que eles mesmos tomam por nada, e, pior, nos dizendo que lhes era tudo; a segunda é que, sendo esse pessoal apto a realizar o Bem independentemente dos mecanismos dos quais lance mão, então o importante não é o que eles estão fazendo, e sim que são eles a o fazer, e não os outros. Donde se conclui que, caso estejam a nos governar mediante o roubo, o entreguismo, a desonestidade intelectual e a mais completa amoralidade, ou caso estejam a nos governar sob as luzes da probidade, da racionalidade administrativa e da sinceridade, nada disso nos diz respeito; só o que nos diz respeito é que o objetivo bom é que eles governem, compreendem? Ainda seguindo essa linha, aliás inescapável, tudo o que for feito é feito para o nosso bem: cada estupro ao caixa, cada puta paga com seu dinheiro, cada mamata concedida a este ou aquele companheiro, tudo isso contribui para o seu bem, qual seja: ser governado por determinadas pessoas nomeadas para trazer luz ao mundo, e não por outras, acusadas de trazer luz somente a si mesmas. Mas não é só isso. A coisa precisa piorar porque, se é assim, quanto mais, melhor: nada impede que as benfeitorias se dêem por atos ordinariamente tomados como certos, mas já que essas avaliações não possuem substância real, qualquer ato é um ato bom e quanto maior for o volume de atos, mais Bem obteremos. Como, historicamente, os atos fora da lei são mais eficientes, seria mesmo o caso de se dobrar o tamanho das cuecas para fins de promoção da justiça social. Bom, acabou a brincadeira. Não, não vou tirar ninguém do castigo. Foi didática, a coisa? Se sim ou se não, não quero mais saber. Estamos num país onde se acredita que falar sério é coisa de malandros, ao passo que mentir é a arma dos justos. Perdi o saco. Vão pro inferno. Não quero mais saber de conversar com gente que não está disposta a se levar a sério. Só me chamem quando for para usar o estrume. Não acho que vá demorar muito, e aguardo empolgado a ocasião. Até lá. Nota do Editor: André Falavigna é escritor, tendo publicado dezenas de contos e crônicas (sobretudo futebolísticas) na Web. Possui um blog pessoal, ofalavigna.blog.uol.com.br, no qual lança, periodicamente, capítulos de um romance. Colabora com diversas publicações eletrônicas.
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