O jovem escorregou para a raiz exposta do velho jequitibá com um suspiro contraditório de alívio e ansiedade. Faltava menos de meia légua para que ele pudesse avistar a fumaça da chaminé da casa, mas a dor no pé lacerado pedia um instante de trégua. Rasgou a manga de uma das duas camisas quase em trapos e forrou a sola esburacada do que um dia fora uma botina reluzente e barulhenta. Bebeu o último gole de água do cantil que o capitão lhe presenteara antes da despedida e acalmou por pouco os movimentos do coração que teimava em saltar-lhe pela boca. Pôs-se de novo a andar fixamente à frente, imaginando a casa - a porta sempre aberta -, a semi-obscuridade enfumaçada da cozinha, onde o feijão já estaria cozido. Viu claramente a mãe a torcer as mãos antes que ele afundasse a cabeça em seu peito e as lágrimas lhe lavassem o rosto marcado pela descoberta do mundo. Antecipou o olhar grave do pai no instante preciso antes da pergunta - Por que voltaste? -, mas não sentiu medo. Sabia que as palavras, tantos anos represadas, viriam como num jorro. Nos poucos meses de andanças na coluna desenrolara a coragem de falar dos sentimentos mais íntimos. Adotado como acompanhante próximo pelo pequeno capitão, adquirira, aos poucos, o costume do olho no olho. Nunca mais teria o jeito arredio das coisas não explicadas à luz da lamparina de querosene. Depois, trazia guardadas na cintura as folhas de caderno, postas ali, a letra miúda e arredondada do capitão: - Toma, leva isso para teu pai! Registrei aí, tudo que o menino me contou sobre seu primeiro dia no nosso exército de Brancaleone. Mostra a ele e guarda-as para não te esqueceres do que viste. No dia em que todos tiveram pão e liberdade, estaremos juntos, novamente. Parte! Vai abraçar tua mãe. Vai casar com a menina de rendas e fazer muitos filhos de olhos limpos e coração justo. Vai! O olhar seco e cheio de hesitação da mãe perseguia a insônia de Joshua Moshe. Ela enfiara o embornal em suas mãos e empurrara-o, porta afora sem dizer uma única palavra. Ficara parada à frente da casa, ouvindo a parolagem final do pai, como uma estátua de sal. Não fizera um único gesto quando ele se atirou pela estrada; apenas permanecera ali, até que não pudesse mais vê-lo voltar-se a cada meia dúzia de passos. Joshua tentava lembrar de sua voz trauteando os acalantos distantes da infância, mas a imagem imóvel, antecipadora da solidão, fixara-se de tal forma em sua incompreensão, que ele apenas esperava que o céu despencasse estrelas sobre suas pernas doloridas. A coberta de algodão, entre seu corpo e a terra seca, não amortecia o desconforto que invadia suas costas, e o embornal sob a cabeça, onde a mãe dobrara as duas camisas e a calça de sarja grossa, estava impregnado pelo cheiro da carne seca, embrulhada em papel de venda. A perplexidade teimava em ocupar todo seu espaço de pensar e Joshua pressagiou um futuro vazio de respostas. A caminhada extenuara suas forças e as cenas do dia teimavam em desfilar diante de si, como um filme impossível de ser detido após o disparo do projetor. Alcançara a coluna, instantes após a última ordem do pai - Vai, faze o que tem que ser feito - e acomodara-se na rabeira da massa de homens empoeirados e mal-cheirosos. O barulho monótono daquelas centenas de passos, os gritos e as risadas - algumas cheias de deboche - despertaram-lhe a lembrança antiga do bulício na quermesse na cidadezinha, onde a menina de saias de renda, rindo dentro da mão, lhe oferecera um pirulito avermelhado. Ele, bêbado de timidez, enfiara a chupeta no bolso, correra para trás da mãe e ficara de longe, agarrado à cintura, curvado por baixo dos braços dela, lambendo o doce vermelho, espiando, acompanhando cada movimento da saia rodada. A sensação do aconchego da mãe levava-o para a cozinha da casa sempre rondada pelo aroma forte de café e pelo conforto da proteção, avesso à poeira da estrada irregular. A ordem para parar, estalara como um látego em seus ouvidos e só então tomara consciência de quantas horas andara. Atabalhoado, deixara-se arrastar por um grunhido ininteligível, em meio ao atropelo de silhuetas, para uma clareira de onde partira uma frase curta exigindo silêncio: - O capitão vai falar! Joshua estarrecera. O pai lhe contara histórias de rebeldia e coragem. Falara daquele homem como se ele fora um semideus homérico, saído dos quartéis do sul distante, com a tropa a acompanhá-lo, na louca aventura de dar terra e pão aos pobres. Um Messias a carregar a esperança em uma salva para distribuí-la aos esquecidos do país. Nos rostos rudes à sua volta, pressentira o mesmo brilho de fé que fez seus antepassados curvarem-se, no deserto, ao profeta que lhes trazia as tábuas da lei. O mesmo coro de gratidão de seu povo faminto, quando Jeovah fizera chover maná nas areias quentes do Sinai. Espichara o magro corpo, exaurido pela longa jornada, sobre aquele mar de cabeças que se estendia à sua frente, com uma expectativa de vésperas. O espanto atingira-o como um cancela quebrada. No lugar do titã esperado, limpando a testa com um lenço que fora branco em algum lugar do tempo, um homem mirrado, esquálido, abrira os braços para a multidão pasma de crentes e, com voz de maciez, desfiara uma ladainha onde Joshua identificara as frases do pai, ao chegar a casa, febril de urgência para mandá-lo em direção às hostes da coluna. Se soubesse o que era decepção, com certeza, usaria a palavra para explicar o impacto que a pálida figura franzina lhe causara. Perguntara-se, angustiado, porque o pai, sempre tão certo, se deixara fascinar assim. Porque lhe dissera que aquele caminho estava traçado nos salmos, porque quase lhe jurara estar escrito que ele, Joshua, secundaria Davi na batalha que derrotaria o gigante opressor de seu povo. Queria tanto dormir, sonhar que estava em seu quarto estreito, onde os cheiros ancestrais e amigos o livrariam da morrinha que pairava sobre todo o acampamento. A carne seca, engolida a custo parecia querer retornar à boca sedenta e ele pressentiu que jamais voltaria a levantar-se no meio da noite em busca da moringa de água que descia branda pela garganta agradecida. Uma vontade insana de chorar queimou-lhe os olhos estáticos a perseguirem as estrelas e Joshua Moshe mergulhou em um rio de pranto jamais atravessado. Nota do Editor: Tânia Mara Garcia é jornalista.
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