Contos da Mula Manca
Consegui finalmente realizar um dos meus fetiches, que era ter uma doencinha, um probleminha de saúde através de uma situação bacana. Antes que meus escassos e amados leitores achem que estou mais louca que realmente sou, devo esclarecer que acho que com saúde não se brinca, tanto que não estou me referindo a nenhuma doença séria, seria no mínimo de mau gosto. É que até hoje, tudo o que me aconteceu sempre foi destituído de qualquer glamour, pelo contrário. Graças à minha época de repórter de TV, por exemplo, quando eu era casada com um médico bacana, mãe de um filhinho e tudo mais de acordo com a mais fina família, tradição e propriedade, tive lombriga e piolho. Não desmaiem de nojo ainda, lembrem-se que a gente passa horas de pé, muitas vezes nos ambientes mais inóspitos e na hora da fome, vai o que tiver pela frente. Mas vivendo e aprendendo, como diz o ditado. Depois da lombriga, que me valeu horas de gozação do então marido e uma receita de vermífugo, passei a andar com um lanchinho na bolsa, hábito que nunca mais consegui abandonar. Já os piolhos atacaram também o pequeno e, por conselho da dermatologista, cortei o mal pela raiz, ou seja, raspamos os cabelos que são muito anelados e dificultariam o tratamento, pois ele tinha apenas quatro anos e não seria bom ficar sujeito aos veneninhos para tal fim. Os tais veneninhos acabaram sendo solução para mim, pois, perua emergente, e repórter de vídeo, definitivamente não pegava bem me apresentar com telhado de Ronaldinho. Para me animar no meio desse atestado de pobreza lembrava sempre de minha prima carioca. Quando soube uma empregada da família tinha sido internada com sopro no coração, um braço quebrado, sintomas de demência (também, não era para menos) e, lá vem de novo, piolhos, disse que ela estava com poli-esculhambose, ou seja, toda ferrada, o que em carioquês ainda era mais engraçado, soava como poli-exculhambose naquele sotaque adorável. Pois eu queria ter alguma coisa fina para variar, como aqueles caras que se acidentam em uma competição de lancha, ou como minha amiga Vivi, que quebrou uma costela esquiando na neve. Pois na viagem à Turquia, onde aliás contei com a companhia de Vivi, já com a costelinha em ordem, meu sonho se realizou. Foi na Capadócia, terra de São Jorge, que além das cidades subterrâneas onde os primeiros cristãos se escondiam dos romanos e formações incríveis de rocha vulcânica, é um imenso deserto. As tempestades de areia acabaram afetando o olho esquerdo, que para piorar minha situação, é o que funciona bem. O direito guarda ainda resquícios do astigmatismo de criança e me derruba literalmente, pois tenho problemas com profundidade e à vezes levo altos tombos. No princípio fiquei apavorada, já me vi com o olho bom fechado e o outro no mais puro estilo "o olho cego vagueia procurando por um". Já de volta a Istambul, fui salva por um médico cipriota - a ilha de Chipre é uma outra nação, também histórica, que fica ao sul da Turquia. Ele estava sentado em um bar ao nosso lado, e começamos a conversar. Quando disse que era médico, lembrei de meus tempos de casada - todo mundo que descobre a profissão daquele fulano simpático fila consulta. A magia valeu. Ele me examinou e diagnosticou blefarite, uma inflamaçãozinha, mas que não coçasse em hipótese alguma, pois eu acabaria tocando o outro olho e passaria para ele. Passei alguns dias andando que nem múmia de filme, com os braços estendidos para frente para evitar a tentação de arrancar as pálpebras com as unhas. Melhorou um pouco, mas ainda voltei para o Brasil com um restinho, o que deu para faturar bem contando para todo mundo que tinha contraído a blefarite em uma tempestade de areia no deserto, uau! Na hora de tratar de verdade, veio a vingança da múmia. O tal gel de lavar olhos é um produto francês para lá de caro. Em mais uma prova que mulher nunca está satisfeita com nada fiquei pensando que bom seria ter tido piolho ou lombriga, mazelas bem mais condizentes com o bolso de um tipinho durango com contas da viagem para pagar. Nota do Editor: Maria Ruth de Moraes e Barros, formada em Jornalismo pela UFMG, começou carreira em Paris, em 1983, como correspondente do Estado de Minas, enquanto estudava Literatura Francesa. De volta ao Brasil trabalhou em São Paulo na Folha, no Estado, TV Globo, TV Bandeirantes e Jornal da Tarde. Foi assessora de imprensa do Teatro Municipal e autora da coluna Diário da Perua, publicada pelo Estado de Minas e pela revista Flash, com o pseudônimo de Anabel Serranegra. É autora do livro "Os florais perversos de Madame de Sade" (Editora Rocco).
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