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Crônicas
16/04/2008 - 05h37
O que tiver de ser será
Wagner Ribeiro
 

Há algum tempo, mamãe ganhou de uma vizinha um maço de folhas de louro. A vizinha, dona Ana, era uma senhora magricela, na casa de seus 70 anos, com cabelos embranquecidos pelo tempo e, também pelo tempo, a pele enrugada.

Mamãe e dona Ana afirmam que a bendita planta possui efeitos curativos para enfermidades estomacais. Entretanto, só usam como tempero para os feijões domingueiros. As folhas foram colocadas dentro da pia. Em água corrente, a mãe as lavou e deixou de molho no cloro de cozinha.

Eu estava sentado no sofá assistindo TV quando ouvi berro assustador. Sai correndo para descobrir o que acontecera. No percurso do corredor que leva da sala à cozinha, imaginei minha progenitora desfalecida, sangrando em bicas, é claro, julgando pela intensidade do urro.

Chegando à cozinha, a mãe estava de faca em punho, contudo, não havia sangue algum, ao menos dela não. Esbaforido, perguntei que diabo estava acontecendo. Num misto de desespero e nojo, com a mão esquerda trêmula, ela apontou para a pia. E a direita manteve erguida com o gume da faca sorrindo em minha direção.

Sobre o granito frio e escuro da pia estava uma lagarta cor de esperança. O pobre bicho movia lentamente seus anéis corporais em completa sincronia, enquanto a mãe estava pronta para decapitá-lo.

Não sei quem estava mais apavorado. A mãe, diante de uma lagarta indefesa, que julgava ser de alta periculosidade, estava, porque, segundo ela, o bicho poderia causar queimaduras gravíssimas. Disse que na Bahia, onde morava na infância, uma mulher havia morrido por causa das tais queimaduras.

Mesmo compadecido com o despautério de mamãe, acredito que a pequena lagartinha, homicida de baianos, estava ainda mais desesperada. Não deve ter sido fácil passar pelo dilúvio torneiral, pelo cloro corroendo sua carapaça cor de esperança e por fim, por uma senhora, insana, com uma faca na mão, lhe atribuindo o título de quase serial killer de nordestinos.

O bichinho, que mais tarde apelidei de Juquinha, sobrevivera à correnteza das águas da torneira da pia, ao cloro de cozinha. Mas, agora, eu, o Todo Poderoso Wagner Ribeiro, o salvei do terrível algoz, minha mãe. Peguei Juquinha com um papel e, cuidadosamente, o coloquei no aquário do meu falecido beta, o Marquinhos, que Deus o tenha.

Senti-me digno do reino dos céus, da graça divina por ter salvado a vida do Juquinha. Mas, minha missão não estava terminada ainda. Precisava alimentá-lo, afinal de contas, me tornara responsável por ele. Fui à casa de dona Ana. Bati palmas em frente ao portão. Depois de alguns minutos, apareceu ela, caminhando lentamente e, como sempre, muito simpática com seu sorriso vazio - não havia um dente na boca da pobre velhota. Pedi algumas folhas de louro para as refeições do meu bichinho cor de esperança, agradeci, dei de costa e voltei para casa.

No terceiro dia em sua nova casa vitrificada, Juquinha começou gradativamente a mudar de cor. No quinto dia, passou do verde vivo e brilhante, para um marrom escuro e opaco. No sétimo dia, ele já havia se cansado da casa que arranjara para ele. Resolveu construir sua própria casa, um alvéolo marrom, tão opaco quando a tonalidade que adquirira.

Ao ver o meu Juquinha metido naquele casulo, fiquei imaginando a escuridão, a solidão e principalmente o aperto desgraçado que deveria ser lá dentro. Juquinha escapou da morte por três vezes: duas por conta da sorte e uma por minha causa. Minha causa! Tornara-me sua panacéia. Orgulhava-me demasiadamente pelo meu ato de bravura, quase um feito heróico.

Vinte dias foram deixados para trás. Juquinha continuava imóvel, solitário na sufocante escuridão do seu lar. A angústia começou a me torturar. Todos os dias, na verdade, umas três vezes por dia, eu visitava Juquinha na esperança de ele dar sinal de vida.

Quando as esperanças estavam se esgotando, o milagre aconteceu! A magnífica manifestação do inapelável poder da natureza. Juquinha se metamorfoseou. Tornou-se uma linda borboleta em cores. Diversas cores vivas, cintilantes. Com os olhos rasos d’água, contemplei a renovação da vida. A renovação que só acontecerá porque eu havia salvado sua vida. Não cabia em mim de tanta felicidade e orgulho.

Levei o aquário do Juquinha para o quintal. Fotografei-o, chamei toda a família para se maravilhar com sua beleza junto a mim. E, especialmente, para comemorarmos a liberdade do Juquinha.

Quando mamãe chegou, estufei meu peito, ergui meu queixo e virei somente minha cabeça e a olhei da cabeça aos pés. Ela entendeu bem o recado. Baixou os olhos, demonstrando sua resignação e não disse uma só palavra.

Tirei-o do gume da morte e, agora, lhe concedia a liberdade. Gostaria de registrar para sempre esse momento com uma câmera filmadora. Ver Juquinha voando, livre, cintilando rumo ao horizonte, era quase como ter um orgasmo fazendo sexo dos anjos.

Tomei Juquinha em minhas mãos pela primeira e última vez. Como numa cena hollywoodiana, daquelas em câmera lenta, entreguei Juquinha à liberdade eterna.

Inesperadamente, num arroubo rasante, um enorme pássaro abriu sua dantesca goela e devorou Juquinha, gulosamente, de uma só vez. Olhamos-nos, nos calamos e voltamos, em silêncio, para dentro de casa.


Nota do Editor: Wagner Ribeiro é jornalista.

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