Em um perfil haikai do poeta Valmir Jordão, poderia ser escrito: irreverente, meado de altura, um feroz humor. Autor de versos que hoje correm mundo, tão antológicos que viraram quase domínio público, "Coca para os ricos / Cola para os pobres / Coca-Cola é isso aí", o poeta Valmir não só corre o mundo em versos, também corre perigo em pessoa. Digo que o poeta corre perigo em pessoa e não escrevo isso por ser um fingidor. Valmir Jordão vem de uma geração que se convencionou chamar de poetas marginais do Recife, que perdeu três, de uma só partida, em 2007: Chico Espinhara, Erickson Luna e França, nessa ordem. Chamados de poetas marginais por incompreensão ou preguiça, com mais propriedade poderia ser dito que ele é herdeiro de uma geração de poetas radicais, que escrevem poesia além das páginas, na própria vida, no próprio corpo. Como uma tatuagem. Desse estigma, ele próprio já disse, exaltado: "Marginal é a poesia, desde que Platão a expulsou. Repito isso: marginal é a poesia, desde que Platão a expulsou da República, certo? Então não tem nada a ver com poeta marginal, porque eu nunca assaltei ninguém, nunca matei ninguém". Apenas, e isto é um crime para uma tradição de poetas que cantam o belo do rio sem olhar suas margens, Valmir Jordão é o guerrilheiro deste petardo: AH, RECIFE Dizem os bardos que uma cidade é feita de homens, com várias mãos e o sentimento do mundo. Assim Recife nasceu no cais de um azul marinho e celestial, onde suas artérias evocam: Aurora, Saudade, Concórdia, Soledade, União, Prazeres, Alegria e Glória. Mas nos deixa no chão, atolados na lama de sua indiferença aluviônica: a ver navios com suas hordas invasoras e o Atlântico como possibilidade de saída... É desproporcional, de uma grande brutalidade, a importância desse fazer poético e sua repercussão nos jornais. Já escrevi antes e repito, cada vez mais sólido de experiência: a chamada poesia marginal de Pernambuco é um oceano que não é visto. Talvez porque os seus poemas estejam em edições pequenas, de tiragens pequenas, de circulação pequena, a preço de duas cervejas. Talvez porque, diferente dos grandes, ou dos quase grandes, dos tidos como grandes, eles não venham apresentados pela mais douta e circunspecta crítica, aquela que descobre em cada obra uma reedição de Baudelaire, de Elliot ou da última referência que estiver em moda. Diferentes dos grandes, eles são todos filhos de má família, um eufemismo, como Valmir Jordão diz em MATER: "Não culpe as putas / pelo comportamento / nefasto dos filhos". Confesso que despertei primeiro para a sua poesia quando faleceram dois poetas-símbolo do movimento, Chico Espinhara e Erickson Luna. O intervalo dos seus óbitos foi curto e eloqüente. Chico, em fevereiro de 2007. Erickson em abril de 2007. Dois meses entre um e outro. De males diferentes, mas de gênese única. Ambos poetas cujo estilo de vida, de aparência romântica, foi antes uma autodestruição pelo álcool e por outras drogas que não atingiram o veneno da legalidade. Dois poetas representativos de uma das tendências do movimento. Mal refeito, no começo de outubro do mesmo ano, recebi a vez do poeta França. Diante disso, pude então sentir que, na próxima vez em que encontrasse um poeta, deveria falar bem alto o que eu pensava, para não procurar depois uma inútil, compensatória estrela no céu. Por isso digo agora, de modo claro e sem dúvida. A poesia de Valmir Jordão, cujos versos hoje repercutem entre escritores gaúchos, que se mostraram encantados por sua revolta e humor, deveria estar gravada em portas, cartazes, cartões, campanhas de cidadania e cartas públicas. "Descamisado / Ai de mim / Ai de ti / Aids em nós". Ou então: "Passei tão mal / ao ver imensa fila / diante do hospital". Este é o poeta com quem tenho caminhado, ele sempre de bom humor, mesmo nas situações mais vexatórias, quando lhe digo que o poder público dá aos poetas esmolas, para lançar no livro contábil das boas ações do dia. Porque Valmir Jordão é um poeta radical, dos que zombam da própria e difícil sobrevivência. Espirituoso, ele é o artista que nos diz, enquanto procurávamos tirar umas fotos suas, e lamentamos descobrir algumas escuras. "Não faz mal, a vingança da luz é fazer sombra". Por isso me retiro aqui, abrigado que fui até então por essa luz. Retiro-me, confesso, com a renovada esperança de que ele não me diga, ao fim: "METAFÍSICO Na saída dum chato, é que percebe-se a presença de espírito". Nota do Editor: Urariano Mota é escritor, jornalista, colaborador do Observatório da Imprensa, membro da redação de La Insignia, na Espanha. Publicou o romance "Os Corações Futuristas", cuja paisagem é a ditadura Médici. Tem inédito "O Caso Dom Vital", uma sátira ao ensino em colégios brasileiros.
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