Já disse isso antes. Há ocasiões em que escrever é simplesmente indecente. Não por falta de assunto, que isso é coisa que não falta. O problema é com o camarada que tem que escrever naquele exato momento em que suas capacidades estão lhe faltando, seja lá por conta do que for. Os problemas pessoais, em última análise, jamais poderão servir de desculpa: toda vez que alguém deixar de cumprir suas obrigações profissionais, terá sido em virtude de problemas pessoais. Se alguém anda com dificuldades no trabalho, anda com problemas pessoais. Se alguém anda mergulhado em questões sentimentais, anda com problemas pessoais. Se alguém anda com problemas com a polícia, anda com problemas pessoais. Se você estiver doente, pasme: o problema não deixa de dizer respeito, na essência, à pessoa que, coisa espantosa, você é. Todos os problemas das pessoas, afinal de contas, são pessoais. As corporações costumam ter problemas meramente corporativos. Já os homens de negócio, por exemplo, caso enfrentem atribulações naqueles negócios que lhes pertencem ou aos quais pertencem, por mais que estejam de bem com a tradição, a família e a propriedade (coisas muitíssimo aceitáveis, vejam lá vocês), estarão com problemas pessoais na exata medida em que os negócios tenham, para esses homens, tornado-se questão pessoal. É que, noves fora, os problemas e as soluções, os bens e os males, as opiniões, os remédios, os livros de poesia e de geometria, a filosofia e os times de futebol - até mesmo o São Paulo, cuja imagem que nos tentam vender é qualquer coisa um tanto mais celestial -, as leis, as idéias estúpidas, a estatística e o chocolate amargo, as picanhas, o parmesão e o sexo anal, tudo isso e tudo o mais são coisas que dizem respeito aos assuntos de ordem pessoal - que são só o que podemos chamar de assunto. Afinal de contas, são só o que importam, de modo exclusivo, às pessoas. Eu sei que as sociedades protetoras dos animais, as organizações não-governamentais ou de interesse público e até mesmo as governamentais ou de interesse privado podem agora se ofender, mas elas todas são pessoas apenas em sentido figurado. Tanto é assim que, se qualquer dessas pessoas desejar, também agora, me repreender pelo que acabei de afirmar, haverá de lançar mão de um de seus entes mais físicos, nomeado sob alguma patente que se possa atribuir a alguém ou mesmo a uma - como direi? - turma que, quando vista de perto, não passará de diversas pessoas reunidas. O pior de tudo é que tal nomeação só se poderá proceder mediante a utilização de entes idênticos aos nomeados, que por sua vez representarão, é inevitável, o sentimento ofendido de outros entes que lhe serão, ainda eles, idênticos a todos os outros envolvidos na questão inteira. É chato, mas por mais que inventemos inúmeras instâncias a quem delegar nossos deveres e - o que é mais lamentável - nossos direitos, no final somos nós que teremos que fazer o trabalho sujo. Não há saída. Portanto, os problemas pessoais não se prestam a justificar os lapsos na vida de nenhum escritor, se bem que possam explicá-los. Por si só, dizem porque o sujeito não escreveu, mas estão longe de oferecer alento aos leitores ou, de imediato, aos que publicam o trabalho do escritor para os leitores que o requisitam. Assim sendo, há pouco a dizer ao escritor que, encontrando-se numa situação tal que não escrever poderia resultar em opróbrio, como um agricultor que se recusasse a plantar e, mais ainda, a colher, como um marceneiro convertido em conservacionista fanático, como um urso polar que optasse pela macrobiótica, como um jornalista esportivo brasileiro médio que se entregasse ao estudo do idioma, se atirasse à tentação de agir de forma oposta à própria natureza e decidisse por não escrever. Só resta uma saída. Escrever, seja lá o que lhe vier à veneta. Algum capricho, alguma atenção e pouco tempo lhe renderão algum texto - com sorte, uma página inteira. Não importa que a página não passe, ela mesma, da mera exposição de especulações em torno da obrigação de escrever justo quando não se sabe nem o que, nem como escrever e, ainda, que se reconheça, tanto dentro como fora dela, a obrigação incontornável de escrever. Quando tudo estiver terminado, tudo terá dado certo. De um jeito ou de outro. Essa é a verdade. Verdade cuja prova creio não poder oferecer, aos senhores leitores, de maneira melhor do que a que ora lhes é oferecida. Até a semana. Nota do Editor: André Falavigna é escritor, tendo publicado dezenas de contos e crônicas (sobretudo futebolísticas) na Web. Possui um blog pessoal, ofalavigna.blog.uol.com.br, no qual lança, periodicamente, capítulos de um romance. Colabora com diversas publicações eletrônicas.
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