De uma vez que cabulei aula, ainda na primeira série, escapuli aos fundos da escola com uma bola de meia para jogar sozinho, praticar embaixadas, sei lá, mas ganhei um súbito e desconhecido companheiro. Mal penetrei naquele sítio baldio, onde amontoava-se material de demolição, ele surgiu apenas de short e, sem nada dizer, acenou que lhe passasse a bola. Assim, em silêncio, começamos a jogar um para o outro. Às tantas, sem me encarar, perguntou se eu ia sempre ali. Ao lhe responder que apenas cabulava aula, sobressaltou-se: "Quer dizer, então, que amanhã você pode não aparecer? Isso vai ser ruim, muito ruim". Em seguida, avançou como um pequeno selvagem e me arrancou o relógio de pulso. Nem tive como reagir. E mais perplexo fiquei quando ele disse: "Só devolvo, se me trouxer um parceiro que venha jogar sempre". A essa altura, sua pele tornou-se algo azulada, unhas e lábios quase roxos. Não era alguém deste mundo - entendi. E mais sinistro se revelou ao me ameaçar: "Enquanto estiver com o relógio, controlarei teu tempo". Saí dali atônito, mas logo me ocorreu quem poderia entregar ao solitário diabrete: um tal sem nome nem endereço que costumava me atirar pedras quando chegava à escola limpo e bem vestido toda manhã. Disse-lhe que um outro igual a ele tinha no pulso um relógio de grande valor e que seria fácil assaltar o fracote. Daí em diante, ou muito bem se entenderam ou aniquilaram-se. Certo é que nunca mais os vi. Nota do Editor: Daniel Santos é jornalista carioca. Trabalhou como repórter e redator nas sucursais de O Estado de S. Paulo e da Folha de S. Paulo, no Rio de Janeiro, além de O Globo. Publicou "A filha imperfeita" (poesia, 1995, Editora Arte de Ler) e "Pássaros da mesma gaiola" (contos, 2002, Editora Bruxedo). Com o romance "Ma negresse", ganhou da Biblioteca Nacional uma bolsa para obras em fase de conclusão, em 2001.
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