Pedira com tanta humildade à vida, que os sonhos de Fredo cabiam numa mísera caixinha de fósforos. Menino ainda, inspirado sabe-se lá em quê, intuíra que conta justa era se dedicar a não mais que dois desejos simultaneamente. De um, cuidaria ele. Do outro, era no anjo-da-guarda que se fiava. E acreditava piamente na riqueza daquela fórmula. Afinal, jamais lhe faltara cama acolhedora e pão à mesa. Ele ia assim mirando ambições com o zelo de quem pede licença ao destino. E, nove anos mal-completados, sugeria a muita gente um certo pedigree sexagenário em seu comportamento. Não que não brincasse. Brincava, e muito. E com espirituosidade. Era desses de gargalhar a um ponto em que os olhos transbordassem em contentamento. Mas, ponta contrária, guardava assustadora disciplina noutros tratos. Para Casa de escola era tarefa sagrada. Ao mesmo modo de obediência a pai e mãe. Comportava-se, então, feito fosse um soldado, levando a tiracolo a caixa de picolés produzidos pela família, que vendia rua afora. Território inviolável. Se acostumara a não desejá-los desde sempre. Porque essencial era ajudar a salvar o almoço do dia seguinte. E, podendo, uma moedinha para o cofrinho. Já sabia previamente o que fazer com as economias, e registrara no costado da caixinha de fósforo: no Natal, arrebataria uma camisa do time do coração. Dessas simples, vendidas em feiras de sábado, bancas de mascates. Sequer o inverno se anunciara, e ele namorando a peça. Tinha tudo às rédeas, até dar com aquela quarta-feira. Madrinha voltando de viagem, trazendo quinquilharias da capital. Havia um presente reservado a ele. Pais e irmãos reunidos na salinha de chão batido, formou-se ali uma cerimônia de ansiedades. A respiração ofegante de Fredo e o papel se desprendendo da embalagem dominando a cena. Chocolate!!! Pela primeira vez, chocolate!!! Contou as barrinhas. Suficientes para todos. Dividiu. Foi recebido como hóstia. Todos em língua estendida, e os olhinhos se comprimindo, como saboreassem uma espécie de pacto com os deuses. Estranho, mas aquela atmosfera silenciosa e o sentimento de que adentrara um novo mundo fragmentaram uma colméia de desejos em Fredo. Incontroláveis. Ganhar beijo de Lili, a vizinha, andar de calça jeans, viajar de avião, comprar o que namorasse nas vitrines... Haveria mais. E Fredo tomou aquilo como uma abençoada provação. Os sons vinham do quarto paterno. Ele nem acreditando, tão belos eram. Foi aproximando o ouvido da porta... Da radiolinha a pilha migravam voz e idioma que lhe soavam transformadores, numa medida que não conseguiria explicar. O francês de Edith Piaf reverberando ao alto-falante, o "Hino ao Amor" invadindo-lhe todos os poros. Fredo agora notando que a vida sugeria mais amplitudes que as inocentemente demarcadas. E que, sem se aperceber, rompera o círculo de giz que ele próprio forjara. O melhor: nada de mal ocorrera. Ao revés. Fora varrido por uma centelha que inaugurava um estado de felicidade singular de meninos. Nudez de espírito assumidamente infantil. Foi desembestado à lojinha da praça. Retornou vestido com a camisa do clube amado. Trazia nos braços uma caixa de sapatos. Pôs dentro a de fósforos, como mera lembrança e simbolismo. Porque os sonhos, aprendera, não cabiam mais ali. Piaf cantou como nunca naquela noite. Nota do Editor: Eduardo Murta é jornalista, autor de "Tantas Histórias. Pessoas Tantas", livro lançado em maio de 2006, que reúne 50 crônicas selecionadas publicadas na imprensa. É secretário de Redação do jornal Hoje em Dia, diário de Belo Horizonte. Já teve passagens também pelos jornais Diário de Minas e Estado de Minas, além de Folha de S.Paulo e revista Veja. É um dos colunistas do Hoje em Dia, onde publica às quartas-feiras.
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