Uma coisa é invadir um país, como se fez em 22 de abril de 1500. Outra é descobri-lo. Descobri-lo depois de ficar no exílio durante dez anos. Mais do que exilado - ser banido da própria pátria. Uma coisa é invadir um país e impor a sua língua, a sua religião, o seu modo de vestir e falar. Outra é um filho da terra sair expulso, ter o corpo banido, quando a alma esteve sempre aqui. Nesse caso, descobrir o Brasil é resgatá-lo depois de ter partido após torturas, prisão; depois de viver anos no exílio, de sentir na língua o sabor de idiomas desconhecidos: espanhol, francês, sueco, alemão, russo, e tantos outros. Acostumar os ouvidos a outros sons, outros ruídos. Sim, isso é descobrir um país. É vê-lo com olhos de criança que tudo vê pela primeira vez, com o alumbramento, o encantamento de uma criança. É revê-lo depois de uma longa ausência. De ter ficado distante da família, dos amigos, do povo pelo qual lutou, das suas músicas prediletas, do sabor da comida de mãe que ninguém faz igual, do feijão com arroz, do cheiro do café coado em coador de pano, entrando nas narinas e chegando à cama pela manhã, misturado com pedaços de sonhos. É perceber deslumbrado que o pesadelo acabou. Voltar é sentir o cheiro do manjericão plantado no quintal e de que nem mais se lembrava, é ouvir os gritos das crianças na rua, falando a mesma língua que falavas havia dez anos e que quase te forçaram a esquecer. Sim, isso é descobrir o Brasil. O Brasil de Tom Jobim, do canto do sabiá, de Chico cantando "Apesar de você", de Elis te recebendo com "O Bêbado e o equilibrista", é saber que apesar de ter se machucado, sobreviveu "em cada passo dessa linha". Quem somente aos trinta anos conseguiu permissão para descobri-lo, para sentir que as feridas já não sangram, que é possível estender a mão ao amigo sem medo de comprometê-lo, sem medo de lhe dizer quem é. Quem somente aos trinta anos descobriu que já não se tem medo de falar, de confiar, de mostrar o avesso do bordado que se teceu no escuro, tem mais do que a obrigação, tem o dever de repartir com os que aqui ficaram as lições que aprendeu lá fora. Dar-lhes a coragem de retirar a névoa dos olhos e revelar o bordado tal qual é. Encará-lo e mostrar que ainda é preciso retirar os nós de tantas linhas, (re)fazer esse bordado tantas vezes quantas forem necessárias, revelar o emaranhado do avesso para que se comprove que ainda há muito por fazer, que o tecido ainda está inacabado. Tecido bordado por tantas mãos que partiram, outras que desistiram no meio do caminho e aquelas que continuam. É tentar enfim, incutir a esperança naqueles que já não a têm, para que resistam e encontrem forças para continuar. Para que, de alguma forma digna, este país que se descobriu se revele uma paisagem de rios limpos, canaviais dançantes, campos de lírios onde homens e mulheres felizes, caminhem como se sonhou um dia. Nota do Editor: Risomar Fasanaro é jornalista, autora de "Eu: primeira pessoa, singular", obra vencedora do Prêmio Teresa Martin de Literatura em júri composto por Ignácio de Loyola Brandão, Deonísio da Silva e José Louzeiro. Militante contra a última ditadura militar no Brasil.
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