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SEÇÃO
Crônicas
11/05/2008 - 08h13
Magra, mas era esperança
Eduardo Murta
 

Só mesmo a casualidade trágica a que se colocasse lado a lado gente em modos de vida assim tão díspares. São as ambulâncias, percebam, tomando o caminho do hospital por vias opostas. Ambas se aproximando, até que o som das sirenes se transforme num timbre uníssono e triste. A tracejada de poeira traz Judázio, menino nascido em terras secas. Esquálido. Beirava os 11 anos.

Com o mundo de ponta-cabeça, ele à maca, vai cruzar os olhares com a paciente que desliza em sentido contrário. As duas miradas confirmando, trôpegas, que haviam mesmo ancorado num porto para doentes. Ela, feito ele, pondo os ossos à mostra. Menina, idade parecida. Igualmente esquelética. Se enxergaram no outro e, sem se aperceber, firmaram ali solidária cumplicidade.

As acontecências se encarregariam do restante, quatro dias depois. Helena já se restabelecendo, transferida para a enfermaria. As luzes acentuando seus traços nórdicos, num branco leitoso. Bem criada. Olhos em água marinha. Estacionou exatamente vizinha ao estranho com quem topara logo na admissão de enfermos. Tinha pele amorenada e uns vincos ao rosto que, àquela altura da existência, só a exposição ao sol inclemente poderia ter produzido.

E era fato. Rumara desde cedo ao roçado com o pai. Ela, descolada, garota de shopping, não fez cerimônia. Pronto perguntou por que estava lá. Judázio se encurvando na resposta, entre tímido e humilde. Balbuciou algo. Repetiu, baixinho, à flagrante incompreensão. Era a fome. Ah, fome!!! Helena esboçou um riso de revelação e desconcerto. Contasse, ele irremediavelmente vislumbraria provocação barata. Daí, se recolheu.

Judázio, crendo na naturalidade da réplica, seguiu aguardando que ela também se abrisse. Ao silêncio, franziu as sobrancelhas, como que inquirindo. Ela deixou as órbitas viajarem ao redor do quarto e, quando as reassentou, estava ele com moldura de coruja, fixo, esperando uma frase. Surpreendeu-se: "Foi vontade de não comer".

Aquilo era algo impensável a quem nascera sob a custódia de refeições que pouco iam além da farinha com rapadura. E cuja desnutrição o havia posto outra vez cara a cara com a morte. Pediu que Helena lhe traduzisse aqueles sentidos. Não sabia, no fundo, se se faria compreender, mas, a seu modo lúdico, tentou iluminar ao colega. Elencou, primeiro, o diagnóstico a caminho da diabetes e, em seguida, as crises, o torpor. Por fim, o estado de anorexia.

Se entreolharam, como que digerindo lentamente um certo amargor de suas sortes. E, jeito espontâneo, deram a falar de coisas boas. Ele contou do sonho em que, coroado rei, celebrou com banquete farto em pernil, carnes de aves, bandejas de frutas e toda espécie de refrigerante. Ela descreveu o aniversário em que, figurino de bailarina, se trancafiou na despensa com a reserva de docinhos. Comera do bolo até a barriga anunciar suas urgências. E o organismo bradar seus limites.

Domingo, dia de visitas, foram se acomodando as famílias. Ambas festejando a vida, as crianças salvas. Os de Judázio, na saída, tiraram embalagem simples do embornal. Deram-lhe às mãos, como fosse um manjar. Os de Helena traziam na vasilha térmica porções temperadas em carinho de avó. Cheirava ao longe. Já sozinhos, trocaram sorrisos e - segredo - as comidas. Ele deixando derreter à boca a torta de galinha. Deleite. Ela fazendo inundar-lhe os desejos o combinado de farinha e rapadura. Era tarde de hospital, vá lá, mas delicada e inesquecivelmente feliz. Sem sonhos anoréxicos. Sem esperanças condenadas à míngua.


Nota do Editor: Eduardo Murta é jornalista, autor de "Tantas Histórias. Pessoas Tantas", livro lançado em maio de 2006, que reúne 50 crônicas selecionadas publicadas na imprensa. É secretário de Redação do jornal Hoje em Dia, diário de Belo Horizonte. Já teve passagens também pelos jornais Diário de Minas e Estado de Minas, além de Folha de S.Paulo e revista Veja. É um dos colunistas do Hoje em Dia, onde publica às quartas-feiras.

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