A razão anda vaga-lumeando em Vó Elza. Pleno fevereiro, é ela, candura, invocando a companhia da filha, a que cuidem dos arranjos da árvore de Natal. Traz duas bolas num rubro de assumido contraste à pele alvinha. A caçula sorri, apenas. E vai desarmando expectativas em cuidadosa comoção. Sugere deixar para amanhã, quando chegam os netos... Sabe que, minutos à frente, tudo se terá apagado. Como numa quarta-feira, meses antes, em que se pusera negra dos pés à cabeça. Véu encobrindo o rosto, chale abraçando as costas. Rumou à igreja, num dos altos da velha Tiradentes. E, vela acolhida às mãos em comunhão, não havia pároco que a convencesse. Invocava bênçãos à alma de Francisco, cujo corpo vislumbrava ali na capela. Inda que fizesse 20 janeiros de partida do marido, insistia que até pelo terno, que ela mesma lustrara, o reconheceria. Dois abraços simbólicos de condolência e o conselho a que voltasse para casa, descansasse, eram o bastante. Se recolhia em tardia dor de viúva. E, grave, cuidava de catar o feijão e metê-lo à panela. O marido, queridinha se apressasse, viria para o almoço... Familiares já haviam perdido a conta de quantas explosões provocara. O teto salpicado em manchas. Contavam, rindo, todas em dias de plantão do anjo-da-guarda. Num instante se desplugava e estava à cadeira de balanço, arqueando num rangente que cortava a tarde. Ia ali namorando os contornos da Serra de São José. E, ao estrondo do panelaço, intuía foguetórios de batizados. Juntava as palmas trêmulas, em prece, a que o recém-chegado à vida fosse acolhido pela sorte. Parentada e vizinhos aportando esbaforidos, saudava o que via como visita-surpresa. Prometia café de coador e broa de fubá. Logo teriam que ouvir, repetida e detalhadamente, a história da onça que lhe lambera os dedos numa incursão às matas do lugar. Já sabiam como terminava: ela acariciando a cabeça do animal, até que adormecessem ambos. Despertaria, sobressalto, mas sem um rastro sequer à sua frente. Ia contando, e os vincos da face denunciando vagueio pleno. Daí a família ter dado importância vã à frase dirigida aos dois netos: "Amanhã é o dia, se preparem". Feição de segredo, Chelo, 9 anos, Nando, 6, tão-somente se miraram. Ninguém notou nas mochilinhas prontas. Na dupla exalando ansiedade. Foram pular da cama, madrugada densa ainda, pé ante pé, até colocarem Vó Elza a postos. Poucos minutos, e eram os três à penumbra da estação. A mais que centenária maria-fumaça em aquecimento, se aproximaram sob cautela. O vapor bafejando às canelas. Os dedos aos lábios vinham sinalizando silêncio. Tomaram logo a cabine. À ausência meticulosamente calculada do maquinista, foi Chelo quem acionou o trem de partida. Exato como observara nas tantas viagens feitas com o pai. Primeira curva, e o apito cruzaria agudo a câmara de eco da Tiradentes em breu. Festejaram infantis, como a uma conquista de doces piratas. Seguiram com o farol tracejando os canais do Rio das Mortes. Era claro, quando se estendeu o forro na sala de comando. Tons florais, fragrância de armário. Biscoitos, um café ralinho aos meninos. Vinho de safra especial para Vó Elza. Brindaram. O ar de imediato foi sacudido em fúria sonora. Helicópteros. Uma dúzia deles. Vôos serpenteados. Correram às janelas, acenando. Enxergaram celebração partilhada. E Chelo, mera curiosidade, inquiriu se alguém ali conhecia a alavanca de freio. Se entreolharam, sem resposta. Deram de ombros. Que por eles se abrissem todos os caminhos. Nota do Editor: Eduardo Murta é jornalista, autor de "Tantas Histórias. Pessoas Tantas", livro lançado em maio de 2006, que reúne 50 crônicas selecionadas publicadas na imprensa. É secretário de Redação do jornal Hoje em Dia, diário de Belo Horizonte. Já teve passagens também pelos jornais Diário de Minas e Estado de Minas, além de Folha de S.Paulo e revista Veja. É um dos colunistas do Hoje em Dia (www.hojeemdia.com.br), onde publica às quartas-feiras.
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