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Crônicas
25/05/2008 - 06h42
Valores que não se perdem
Priscila Dalcin
 

Manhã de domingo, uma brisa leve congela meu rosto, não consigo disfarçar o ranger dos dentes. Coloco meu casaco enquanto alguns familiares reparam com estranheza. Converso com os primos que carreguei no colo anos atrás ainda tentando me acostumar com a imagem já adulta deles. Uma tia nos interrompe e solicita a participação de um casal de netos em um dos rituais da cerimônia que está prestes a começar. Tímida, não esboço reação. No entanto, meu primo aceita o convite. Não me nego, afinal, é um dia especial para toda a família.

No alto da serra gaúcha, uma vista que retém minha atenção. Enquanto a capela se enche, alguém acena. É hora da missa. Os convidados se acomodam e trocam saudações. Diversos parentes que não vejo há mais de dez anos me cumprimentam. Pergunto-me como eles se lembram de mim ao passo que eu não faço a mínima idéia de quem sejam. Retribuo emocionada com o afeto sincero, que muitas vezes percebo que me é repassado simplesmente pelo fato de ser neta e filha de quem sou. Sinto-me honrada, orgulhosa. Observo gestos, olhares. Algo é diferente, mas não consigo identificar o que exatamente.

No altar, meus avós comemoram 60 anos de casados. Em dado momento, o filho mais velho do casal relembra a infância pobre no campo, dividida com outros nove irmãos, e homenageia os pais agradecendo pela herança recebida: educação, valores e muito amor. Choro compulsivamente. Fui pega de surpresa, não esperava tanta emoção. A distância me fez esquecer que existem pessoas que acreditam e vivenciam os mesmos ideais de vida que eu. Quanta ingenuidade, pois se é deles que advém toda a minha educação! Como pude me permitir cair em tamanho desalento emocional? A resposta surge rapidamente em minha memória.

Rio de Janeiro, alguns anos atrás. Após muitos meses tentando, finalmente consegui uma vaga na televisão. O dia-a-dia era pesado, sem descanso. Enquanto uns colegas de trabalho passavam-me dados errados e modificavam meus documentos de trabalho propositalmente, eu me desgastava evitando as constantes e inapropriadas aproximações masculinas. Embora fossem tidos como normais, tais comportamentos me agrediam violentamente, já que estava ali com o único objetivo de trabalhar e mal conseguia. Minha saúde psicológica se deteriorava aos poucos. Certo dia, apresentei algumas idéias novas, que foram muito bem aceitas e eu, demitida. Fiquei estarrecida, pois achava estar ajudando a empresa a crescer. O que ainda não entendia é que estava ameaçando alguns egos inflados, algo que mais tarde descobri ser muito comum em profissionais da minha classe, infelizmente.

Meses depois, em decorrência de problemas financeiros, fui morar em frente à entrada de um dos morros cariocas mais violentos da cidade. Confesso, ouvi mais histórias do que vivi, por sorte ou proteção divina, não sei ao certo. As poucas vezes que presenciei confrontos, ou indícios deles, sentia a pressão baixar e o corpo tremer por inteiro. Minha rotina era sair de manhã cedo para trabalhar e depois ir para a faculdade, retornando por volta da meia-noite. Na volta, costumeiramente deparava-me com jovens fumando algo ilícito. Nem prestava atenção, apenas obedecia à lei que impera nestes locais: abaixava a cabeça e seguia adiante.

Por vezes ouvi tiroteios à base de metralhadoras e escopetas escondida no quarto e amedrontada com as explosões de bombas caseiras. Ao final dos confrontos, deparava-me com vestígios de sangue no chão. Restabelecia-me e seguia para o trabalho como se nada tivesse acontecido. Distante da família, poucos se deram conta dos riscos que corria. Eu menos ainda. Mas algumas histórias atormentavam meus ouvidos, como daquelas de jovens que são levadas à força e obrigadas a se tornarem mulheres de marginais. Verdade ou não, isso me perturbava, pois além de ser novata no local, a roupa de trabalho também denunciava que eu possuía outras condições sociais. Por ser diferente do todo, evidentemente me destacava. Em determinadas situações isso é um benefício, mas neste caso, era um chamariz para o perigo.

Nesta época já estagiava em outro local e novamente propus soluções para diversos problemas em meu setor. O que não percebi é que a minha opinião era indesejada. Desta vez não fui mandada embora, mas sofri sem reação com diferentes tipos de humilhações. Até que um dia não consegui mais me levantar da cama. Demiti-me, e na cama permaneci doente por alguns meses. Desenvolvi diversos problemas de saúde, dos quais me trato até hoje. Àquela altura, tive que aprender o que a vida estava querendo me ensinar e eu me recusava: na cidade grande, os valores passados pelos meus avós são considerados uma grande bobagem.

Pensando em tudo que enfrento para sobreviver no Rio de Janeiro, volto meu olhar para o altar. Meus avós trocam alianças. Continuo tomada pela emoção que, aliada aos meus conflitos internos, não me permitem parar de chorar. A cena que presencio se mistura aos meus pensamentos. Comparo a realidade que me rodeia com a do local onde vivo. Sinto repulsa. Na cidade grande, as relações afetivas são tidas como descartáveis e por isso, casar-se com um companheiro fiel e honrado é realmente muito difícil. Aliás, desejar isso é considerado até inocência. E em termos profissionais, a competitividade inescrupulosa é tida por muitos como um meio de sobrevivência genuíno.

A cerimônia se finda e consigo controlar minhas lágrimas. O churrasco é servido junto às comidas típicas. Cerca de 200 convidados estão presentes. Ainda pensativa, encanto-me com a simplicidade e a inocência das pessoas. Percebo então o que é aquela tal diferença que estava me intrigando tanto: aqui as pessoas prezam pela sobrevivência dos valores de família, de união e de solidariedade com os outros. Penso no que me tornei e chateio-me com o fato de ter sido obrigada a adquirir uma certa malícia para conseguir me proteger na cidade onde vivo. Meu choro expurgara um sofrimento oculto dentro de mim, uma dor intensa de ter passado por todo tipo de situação degradante em função da escassez de valores que acomete a sociedade moderna. Mas sinto uma enorme sensação de alívio: são a esses valores nos quais fui criada que submeto minha conduta de vida. É neles que me apego para suportar a falta de humanidade da cidade grande. Eis a minha redenção.


Nota do Editor: Priscila Dalcin é jornalista.

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