“Não há povo tão primitivo, tão bárbaro que não admita a existência de deuses, ainda que se engane sobre a sua natureza” - Cícero, De natura deorum II, 4. Sendo a pessoa humana um ser naturalmente religioso, resulta infrutífero esquadrinhar a história com as pinças do ateísmo. Dificuldade semelhante à que tem o analfabeto em entender a ciência, tem o ateu em compreender a alma das civilizações, posto que são as religiões e a fé que lhes dão muitos de seus influxos mais vitais. Rodeada de episódios controversos, como os sonhos que antecederam as batalhas de Saxa Rubia e da ponte Mílvio, relatados por Constantino ao historiador Eusébio de Cesaréia, a lenta e tumultuada conversão do imperador romano é parte importante da história do Ocidente. Com efeito, após 250 anos de perseguições quase ininterruptas, em que o “sangue dos mártires adubou a sementeira da fé”, o Cristianismo foi deixando as catacumbas para se tornar religião do Império. Seja na lenda, seja no fato, foi Constantino que buscou a vitória e a unidade na Igreja e não a Igreja que buscou sua vitória e sua unidade no Império. Aliás, a divisão romana logo se tornaria definitiva e o Império caminhava para o ocaso. Quando Odoacro, em 476, enrolou as insígnias de Roma e as enviou a Constantinopla, encerrava-se uma ficção. O Império Romano do Ocidente já estava extinto. Alarico entrara na capital em 410 e tribos bárbaras desfilavam pela cidade havia muitos anos (por isso, no fim da 2ª Guerra, ao verem os ianques entrar em Roma, diziam os italianos: “Todos os bárbaros já estiveram aqui, só nos faltavam os peles-vermelhas”...). Com a ruína do Império inicia-se, para as instituições, uma longa noite de muitos séculos. E não houve estadista destacado que não expressasse, bem ou mal, o sonho da reconstrução da unidade ocidental, de que a Igreja permaneceu como sinal vivo e eficaz. Compreender o Ocidente implica, então, mergulhar naqueles abismos iniciais em que o Cristianismo agiu como fermento e salvaguarda dos valores nucleares da civilização. Observa Daniel-Rops que essa extensa jornada iniciou na noite de Natal do ano 499, quando Clóvis vergou-se sobre a pia batismal. Começava a conversão dos bárbaros e se decidia, ali, o destino do Ocidente - o nosso destino. Nos séculos que se seguiram, a Igreja, quisesse ou não, foi o fiel da civilização. Como regra, não era ela que buscava o poder político, mas era este que a buscava, por sua supremacia cultural e moral, bem como pelo que sua unidade significava para o disperso poder temporal. E ainda bem que foi assim! Quem percorre a Europa encontra, em cada canto e recanto, as homenagens dos povos aos admiráveis bispos medievais. Em nome do “carpinteiro galileu”, esses faróis da história os conduziram em meio às trevas como guardiões do passado, a caminho do Reino definitivo. Nota do Editor: Percival Puggina (www.puggina.org) é arquiteto, político, escritor e presidente da Fundação Tarso Dutra de Estudos Políticos e Administração Pública.
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