O símbolo do batom redesenhando os lábios estava para além da arquitetura das vaidades em Titina. Era, já aos 7 anos, a versão simplificada da aura feminina. Como ela sonhava com aquele encontro. E, diabo, não teria arrependimento maior que o de ter confidenciado isso ao pai. Se recorda dos bigodes quase crepitarem em furor, trêmulos, a voz grave e a moldura do olhar como que a fuzilando. Mesmo novinha, não tropeçava em significados: a reação era sinônimo de que caíra em maldição irreparável. Alinhou convicções logo tarde, quando Coronel Isidoro retornou da cidade. Adentrou a fazenda sem o buzinaço tradicional e apontou-lhe o dedo indicador assim que meteu o rostinho à janela. Sinalizou que entrasse. Sem pestanejar. E o pior viria em seguida. Família reunida à mesa, estendeu-lhe o pacote pardo. Tremeu à constatação. Milhos. Sequer retrucou. Tomou às mãos, se dirigiu ao quarto do meio, o dos castigos. Ajoelhou-se aos bagos maduros. Rosto virado para a parede, como recomendado. Chorou, à margem de se derreter. Só saiu perto da meia-noite, mãe e irmãos implorando. Jurou daí alimentar um plano que a pusesse fora de casa. Os 12 anos chegando, dava jeito de se enroscar às irmãs mais velhas para as incursões à cidade. Mendigava uma chance. Iria, sim, mas sob promessa de estrita vigilância. Era numa escolha como que a esmo que buscava os olhos masculinos. Se insinuava. Face de bonequinha, fazia ar de candura e, ao final, desarmava sorriso e carregava em malícia na piscadela. Aprendera com prima Lisboa, esta à beira dos 17. E a professorinha ensinara mais. Algo que faria corar os recatados. Um roçar de língua ao entorno da boca. Gesto felino. Nas rodas do colégio de freiras, as colegas eram definitivas: não havia homem que resistisse. Os sinais estavam, no fundo, era enlouquecendo os machos do lugar. Sem saber se correspondiam à provocação infantilmente desconcertante ou se entravam para o clube de lealdade ao coronel. Fizessem assim, entregariam a cabeça da menina em bandeja à severidade do pai. E, tesão bafejado pelos demônios, talvez jamais soubessem o aroma daquelas coxas que já se desenhavam belas em Titina. Foi que, dia seguinte, cedo se formou espera à varanda do fazendão. Ninguém dizendo a ninguém por que estava ali. Mas todos pedindo audiência ao velho Isidoro. Tião, açougueiro, quarentão barbado. Simões, agiota, mascador de fumo. Cento e trinta quilos. Suélio, carola, dono de armarinho. Considerações ao pé do ouvido, chapéu recolhido ao peito, parecia ritual ensaiado. O que se pedia, invocando segredo em eventual recusa, era benção para o casamento. Coronel espantado com o deslumbramento, se perguntando se a filha inflara aqueles desejos... Entrelaçou as pontas do bigode. Prometeu respostas numa semana. Melhor seria logo selar destino seguro à pequena. Convocou Suélio. Festança, porco no rolete, novilha, cachaçada, Titina partiu. Véu e grinalda, rumou à casa do marido. Ensaiava serenidade, pulsava ânsia. À entrada, pronto ganhou o que elegera como presente: caixa de chocolates e o sonhado batom. Repassou ponto a ponto o plano ditado pela prima. Insinuou estilo dominadora e, em minutos, estava lá o carola: só em meias, pés e mãos atados à cama. Ela sorriu menina, comeu o primeiro bombom. O segundo, o terceiro. Gargalhou. Pintou os lábios num vermelho desbragado. Fugiu de bicicleta. Os gritos de Suélio, em desespero, e os dela, em festa, atravessaram a noite. A madrugada tinha, enfim, cheiro de mulher. Nota do Editor: Eduardo Murta é jornalista, autor de "Tantas Histórias. Pessoas Tantas", livro lançado em maio de 2006, que reúne 50 crônicas selecionadas publicadas na imprensa. É secretário de Redação do jornal Hoje em Dia, diário de Belo Horizonte. Já teve passagens também pelos jornais Diário de Minas e Estado de Minas, além de Folha de S.Paulo e revista Veja. É um dos colunistas do Hoje em Dia (www.hojeemdia.com.br), onde publica às quartas-feiras.
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