Fim de tarde. Miguel voltava para casa com a cabeça na lua, pensando em coisas sobre o trabalho. De repente, avistou, mais à frente, na calçada, um homem maltrapilho, sentado, com a mão esticada, pedindo esmolas. Já não era a primeira vez que via aquele sujeito próximo à sua residência. Em coisa de pouco mais de um mês, o jovem já havia visto o “novo morador” pelas redondezas umas 4 ou 5 vezes. E sempre que passava próximo ao mendigo, ouvia o pedido: “Jovem, me dá um dinheiro pra comprar um pão?” Miguel ignorava. Nem virava o rosto. Olhava reto, como se estivesse passando por uma árvore ou um objeto qualquer. Quando pequeno, Miguel passeava pela rua de mãos dadas com sua mãe. Via crianças sujas, com roupa rasgada e sem brinquedos, mas mesmo assim queria brincar. Mas a mãe puxava o garoto pelo braço, a fim de evitar a “mistura”. Miguel nunca entendeu bem o motivo de poder brincar com umas e com outras ser proibido de tal ato. Um pouco mais crescido, veio a entender os puxões que levava no braço. Começou enfim a entender melhor as coisas. Já adolescente, enxergava um mundo diferente das fantasias de tempos atrás. E se espelhava muito em seu pai, um diretor bem-sucedido de uma grande companhia. Miguel achava que cada ser humano deveria correr atrás de seus ideais, sempre batalhando, não importasse as dificuldades que fosse enfrentar. E tentava aplicar esse pequeno teorema em coisas simples. Por isso, sempre fazia vista grossa a pessoas que julgava serem ociosas. E assim era com bêbados, mendigos, pivetes e outros tantos seres candidatos a “escória da humanidade”. Quando foi se aproximando do mendigo, Miguel percebeu que uma senhora puxou uma nota de 20 reais da bolsa e deu pro homem. Indignado com a cena, Miguel vai reclamar com a senhora: - Que coisa feia! A senhora não tem noção do que está fazendo! - E o que tem demais em ajudar ao próximo, meu filho? - Ajudar ao próximo? A senhora não pensa? Além de humilhá-lo indiretamente, ainda dá trela pra ele! Tá chamando o cara de incapaz. - Meu filho, ele é um coitado sem oportunidade! Você teve educação, conseguiu um bom emprego. Ele não! É uma vítima, um pobre coitado! - Tenho sim, mas nada me veio de graça! Foi preciso muito esforço da minha parte. Agora, se a senhora usar um pouco do que Alzheimer ainda não lhe tirou, não deveria ajudá-lo. - Como é, seu molecote?! - Isso mesmo, velha burra. Até concordo em ajudar ao próximo. Mas a senhora não está ajudando ele. Está sustentando! O que é bem diferente. - Como assim, seu moleque! Eu faço da minha aposentadoria o que eu quiser! - Tudo bem. Então observe o que acontece depois que ele tiver o dinheiro em mãos. A senhora acha que ele vai comprar pão e leite? Ele vai é comprar supérfluo. Cachaça e cigarro! - Duvido que ele faça isso! - Ah é! Então por que a senhora acha que ele pede dinheiro ao invés de comida? Não seria melhor ele procurar um abrigo da prefeitura? Lá ele teria dignidade e onde ficar. Mas prefere a rua, por que diariamente cerca de vinte velhas burras como você dão esmola pra ele! Não é um emprego e tanto? Pior, é um emprego que não se trabalha e tem lucros! - Pára de falar besteira, seu bostinha! Suma da minha frente! - Eu to falando besteira? A senhora não percebe? Ao invés de lhe dar o peixe, ensine-o a pescar. Dar acostuma as pessoas a vadiagem. Ofereça um emprego a esse infeliz e vê se ele aceita! Duvido! Depois ainda diz que ele não tem oportunidade. O mendigo se levanta e intervém: - Quem me dera poder trabalhar... - Você só diz isso por que tá na frente dela. Na empresa onde eu trabalho estamos precisando de faxineiro. Você topa? Consigo que você comece ainda esta semana. - Bem... é que... eu nunca trabalhei como faxineiro... sabe como é... - Tá vendo? Já tá aí gaguejando. Prefere ficar aqui se humilhando, sem fazer nada e ganhar dinheiro fácil as custas de senhoras piedosas. - Mas é como eu lhe disse, eu nunca trabalhei com faxina... não sei como lidar... - Ele já disse que não sabe trabalhar com faxina! Seu moleque! É muito fácil falar quando se está por cima da situação! - Meu amigo, você quer o que? Ser diretor ou executivo? Você mal deve saber ler ou escrever! Não pode exigir nada. Tem que pegar o que aparecer. Qual o mistério em varrer chão? Acha que precisa fazer o que? Faculdade de Vassourologia ou Gestão em Pano de Chão? - Você é um merdinha! Tá humilhando o pobre. - Foi você que humilhou, lhe dando dinheiro, sua velha demente! Por que não leva logo essa ameba pra casa então? Aliás, a cada mendigo sujo que encontrar, leve para casa. A senhora não lê jornal? Nunca viu matérias sobre cidades do sul do país que colocam placas pedindo para não dar dinheiro nos sinais? Tem prefeituras que até recolhem esses pés rapados de madrugada e mandam pra outros lugares! O mendigo tenta se defender: - Agora tá na hora de você calar sua boca, seu playboyzinho de merda! A senhora fez um gesto nobre em me ajudar! - Tá maluco, seu verme? Quem é você pra me mandar calar a boca assim? Senta aí senão te mato de porrada. Para não perder a razão com a senhora, o mendigo obedece. Já ela parte pra cima de Miguel, querendo bater nele, mas ele se esquiva. A senhora cai e bate a cabeça no chão. É o suficiente para algumas pessoas que viam a discussão de longe se aproximarem. A polícia chega e prende Miguel, acusado pelo mendigo de ter derrubado a pobre idosa. Dois meses depois, a senhora já estava recuperada da pequena cirurgia realizada na cabeça, podendo sair à rua e retomar seus afazeres e “doações”. Já Miguel conseguiu sair da prisão por um hábeas corpus, esperando o julgamento em liberdade. Assim que saiu, viu na TV notícias da falência de seu pai e do suicídio da mãe, desesperada por ter todos os bens confiscados após denúncia de fraude e irregularidades na empresa do marido. Este, por sua vez, tem agora como teto as estrelas e melhor amigo um certo senhor, que sempre lhe conta fatos sobre sua vida. Entre tantos causos, ele adora repetir com orgulho a história em que se sentiu um herói, sobre uma senhora que o defendeu e foi agredida por um garoto que acabara preso. Nota do Editor: Renan Oliveira é carioca, 24 anos, é jornalista, radialista e pós-graduando em Gestão Estratégica da Comunicação pela Facha. Trabalha na Assessoria de Imprensa da Biblioteca Nacional e colabora com o site www.palavriando.com.br, e está escrevendo seu primeiro livro de poesias, "Além do Infinito". Já trabalhou nas assessorias da Companhia Estadual de Águas e Esgotos (CEDAE) e também no Instituto Benjamin Constant. Tem um poema publicado na Antologia de Poetas Contemporâneos vol. 39, da Câmara Brasileira de Jovens Escritores (CBJE).
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