Nas comemorações dos 400 anos do nascimento do padre Antônio Vieira – ocorrido em 1608, na Lisboa sob o domínio espanhol –, deu-me ganas de reler a sua clássica Arte de furtar, escrita em meados do século 17 e que, tanto quanto o Elogio da loucura, de Erasmo (lançado uma centúria antes), teve o intuito de denunciar e satirizar os donos do poder e seus infindáveis e inimputáveis abusos. Naqueles tempos inquisitoriais e de absolutismo político era impensável utilizar a linguagem direta numa obra dessa natureza. Impunha-se, ao contrário, valer-se de subterfúgios literários, como a fala de um louco, como fez o sábio de Roterdã, ou a alegoria das unhas, como foi o caso de Vieira. Mesmo assim, o nosso padre passou maus momentos nos cárceres da Inquisição, seja pela condenação aos furtos cometidos por papas, bispos, reis, príncipes, funcionários públicos e malandros de todo naipe, seja pelos sermões apocalípticos que proferia dos púlpitos de várias cortes européias e do próprio Vaticano; seja, ainda, pelo esforço diplomático que desenvolveu em 1640 e que o obrigou a negociar com os hereges holandeses, para obter a restauração da autonomia lusa face à Espanha. Polêmica e maldição. A Arte de furtar só veio à luz em forma de livro em 1744, quando Vieira já estava morto, em edição da Officina Elzeviriana, de Amsterdã, dando início a uma das mais acaloradas polêmicas internacionais. Apesar de seu nome aparecer no frontispício do livro, choveram contestações de autoria, ao que tudo indica advindas do estilo gongórico em que o texto está vazado e que era de uso trivial do admirável jesuíta, cuja assinatura jamais constou dos originais. Além do estilo (que, segundo Boileau, seria sempre o duplo do autor), a construção das frases, as metáforas e a exemplificação dos casos, bem como as incontidas indignações que explodem ao longo das citações dos inúmeros tipos de furtos que se praticam em nome e à custa da ingenuidade dos cidadãos valeram, para os analistas do texto, como evidência de autoria. Daí que o nome de Vieira está em todas as edições da Arte de furtar, da primeira, de 1744, até as mais recentes. Há, pois, uma maldição a acompanhar o destino dessa monumental zombaria literária sobre a incontrolável vocação governamental para afanar o suado dinheirinho do povo: a maldição da autoria. E com ela, o inevitável conflito de opiniões, tanto de críticos, quanto de historiadores. Fato é que, nos governos, furta-se em qualquer regime, em qualquer língua, em qualquer moeda, em qualquer religião, em qualquer tempo. E, seja da autoria de quem for, o que se lê na Arte de furtar – abstraído o vernáculo arrevesado do gongorismo seiscentista – anda mais atual do que nunca, nestes Brasis dos sobrepreços, dos mensalões e dos cartões corporativos. Valor de marketing. Voltando a falar das polêmicas que há três séculos travam vieiristas e antivieiristas sobre a autoria da Arte de furtar, busquei refrescar minha memória com o estudo que, há cem anos, elaborou João Ribeiro sobre essa apaixonante questão. O grande mestre da historiografia e da filologia brasileira jura de pés juntos que, apesar das aparências estilísticas com os Sermões (cerca de 200), com as Cartas (cerca de 500) e com tudo o mais que Vieira escreveu e assinou nos seus 90 anos de vida, atribuir a Arte de furtar à sua pena não passa de uma fraude, cometida, de preferência, por impressores e livreiros, para vender obra tão onerosa na edição e tão complexa no contexto, e assim evitar os possíveis prejuízos da estocagem dos volumes. O nome de Vieira teria, no caso, uma eficaz função de marketing. O exaustivo e erudito ensaio de João Ribeiro busca provar duas coisas. Primeiro, que Vieira não escreveu a Arte de furtar. Depois, que os outros hipotéticos autores do tratado – João Pinto Ribeiro e Duarte Ribeiro de Macedo – são tão fracos e incompetentes que seria absurdo, dada a mediocridade intelectual, atribuir-lhes a autoria de tão extraordinária obra. A segunda tese está competentemente demonstrada por Ribeiro, mas a primeira nem tanto, eis que os argumentos antivieiristas sofrem do mal de ser pontual e exageradamente detalhista, dada a falta de razões mais consistentes – o que resulta numa longa monografia em que o custo é por demais oneroso para o benefício que se pretende buscar. Assim sendo, a questão da autoria persiste sem solução. Pelo bom senso, parece-me melhor continuar a aceitar, até evidências em contrário, que essa imortal e sutil denúncia dos assaltos ao erário, pelos governos, e aos bens privados, pelos ladrões profissionais, deve ser creditada ao genial Antônio Vieira, um escritor que, na prosa, fez o mesmo que Camões nos versos: consolidou e eternizou as regras básicas da língua culta de Portugal e do Brasil. Profeta ontem e hoje. Quanto à ladroagem, eis que diz Vieira ou algum ghost-writer tão competente como obscuro logo nos capítulos III e IV da Arte: “(...) é o que acontece em muitas repúblicas do mundo, e até nos reinos mais bem governados, os quais para se livrarem dos ladrões (...) fizeram varas, que chamam de justiça, mas elas em vez de nos guardarem as fazendas, são as que maiores estragos nos trazem nellas” (sic). Ou: “E pelo discurso deste Tratado, iremos vendo para que não engasgue algum escrupuloso nesta proposição, com a máxima de que não há ladrão que seja nobre, pois tal ofício traz consigo extinção de todos os foros da nobreza, declaro logo que entendo o meu dito, segundo o vejo exercitado em homens tidos e havidos pelos melhores do mundo, que no cabo são ladrões, sem que o exercício da arte (de furtar) o deslustre, nem abata um ponto do timbre de sua grandeza. (...) Este mundo é uma ladroeira (meta cada um a mão em sua consciência) ou feira da ladra, em que todos chatinam interesses, créditos, honras, vaidades; e estas cousas não as pode haver sem mais e menos; e em mais e menos vai o furto, quando cada um toma mais do que se lhe deve, ou quando dá menos do que deve.” Uma missa, pois, pelos quatro séculos de nascimento desse profeta do seu e do nosso tempo. Nota do Editor: Paulo Nathanael Pereira de Souza é doutor em educação e presidente do conselho diretor do CIEE Nacional e do conselho de administração do CIEE/SP.
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