Solícito e fiel, o melhor amigo do homem tem sempre algo em favor do homem de quem é o melhor amigo: um ombro, um gesto, um olhar compreensivo ou mesmo uma bunda na qual se possa descontar a raiva à força de pontapés. O melhor amigo do homem é capaz de ser obediente, mas também de rebelar-se propedeuticamente durante o estabelecimento daqueles limites que delineiam as verdadeiras amizades. Deve ser capaz de pressentir a necessidade de seu amigo, de antecipar-se a seus desejos mais bobos, de servi-lo cegamente tanto na felicidade quanto na dura travessia sob o frio da noite solitária e sombria. O melhor amigo do homem só tem olhos para as qualidades do objeto de seu afeto, e fará tudo o que estiver a seu alcance para defendê-lo contra as mais terríveis ameaças. Até a própria vida pode, e freqüentemente é oferecida em sacrifício quando surge a hora de mostrar ao homem quem é seu verdadeiro – e sobretudo melhor – amigo. A alegria do melhor amigo do homem preenche seus olhos toda vez que estes vêem o objeto de seu afeto, e deles se vai assim que este sai de seu campo de visão. Para essa criatura dócil e amorosa, a única coisa que importa no mundo é seu amigo, e sua ausência é a ausência de todo o significado da vida e, portanto, da vida mesma. E não, ele não vem engarrafado. Se bem que, muitas vezes, trás a garrafa junto a si, a pedidos ou, ainda, só porque teve uma boa idéia. O melhor amigo do homem, é claro, é o garçom. Tive muitos, de muitos tipos. O do Bar Barão, o Hélio, é ainda um velho rabugento e imundo, generoso e engraçado. Jurava ter pedofilizado inúmeras sem-teto imberbes, mas penso que tenha sido tudo gênero. Deu-me muita bebida de graça, rasgou cheques de amigos meus, esculachou muitos casais e contou muita mentira, mas em verdade, em verdade vos digo: vai tomar dinheiro assim dos outros lá na puta que lhe pariu, compreende? Porque esse sabia vender. Na Maria Antônia, no Azaléia, havia o Chicão. Seu nome era Francisco Antônio Estrela de Brito, algo que poderia ter lhe rendido o mesmo “Chico Estrela” que servira, nos tempos áureos de Chicão, de apelido para ninguém menos que o facinoroso “Maníaco do Parque”. O problema é que o Maníaco do Parque, perto do saudoso Chicão, era a própria moça fina torcedora do São Paulo. O homem era um animal – assim como nós, só que irracional. Atirava os sanduíches aos fregueses dizendo algo assim: - Come, filha da puta! O freguês estava lá, sentadinho, tomando seu refresco inocente. Ele chegava por trás, sem cuidados, e o fazia simular, na marra e de um só impulso, um simulacro de felação no qual oferecia à singela garrafinha de Guaraná Champagne o doce papel de poderoso falo verde e translúcido, ao som de qualquer grunhido parecido com “Chupa, Cabra!”. Apalpava estudantes, alisava cabelos de desconhecidas, envolvia-se em brigas ferozes e sugava sonoramente os lábios a cada beldade que via passar pelo balcão. E eram muitas: o Azaléia está próximo ao Mackenzie, à FAAP, à Santa Casa de Misericórdia. Misericórdia que não tiveram com Chicão: mataram-no no carnaval de 99, não me falha a memória. Fico pensando que espécie de motivo seu algoz teve que inventar (os motivos para matar quase sempre são inventados), e chego à conclusão de que a criação não deve ter sido muito complexa, afinal. O Andrades, do Lone Star. Esse era um sujeito sensível. Sensível, inclusive, quanto à minha fome: sempre comi uma chimichanga a mais do que o combinado no cardápio. Ficamos quase amigos. O caso é que o homem tinha perdido um filho muito menino, e creio que se afeiçoasse mais pelos clientes cuja idade, de acordo com esse arbitrário relógio que regula nossa memória, lhe parecesse estar próxima à que o rapaz teria caso tivesse sobrevivido. Nunca conheci garçom tão introspectivo, nem tão calmo. Não há dúvidas de que fosse triste, e a tristeza de Andrades ainda assombra minhas noites. Havia aquele bar da Fidalga com a Aspicuelta, acho que se chamava Bar Bartolo. Nele, dois garçons me suportaram durante um longo período de desilusão adolescente. O primeiro, chamado Francisco, fazia o papel de policial bonzinho. O segundo, creio que Maciel, preferia fazer o de policial extremamente bonzinho. O caso era mesmo de polícia, afinal. Não vejo como a casa possa ter obtido lucro com minha presença. Anos depois, Maciel abriu um restaurante nordestino na mesma rua do antigo bar que, penso, até falira. Como proprietário, revelou-se tão generoso como quando era garçom. Não sei se já faliu. Passo lá, qualquer hora. O Arlindo, do Bar e Lanches Universitário, casa conhecida pelos tolos como “Sujinho”. Tolos porque a alcunha, na verdade, pertence tradicionalmente à outra espelunca que – com mil demônios – fez por merecer a coisa, garanto. O Arlindo dá a impressão de trabalhar bêbado, mas deve ser só impressão: mais de uma vez o vi contendo visitantes exaltados com destreza tal que só poderia estar lúcido, a despeito do nariz vermelho, da voz pastosa e dos passos cambaleantes. E ele nunca atende cliente nenhum, é incrível. Acho que Arlindo jamais serviu porcaria alguma a ninguém, mas é o garçom mais marcante da Maria Antônia. Um assombro. De volta ao Sujinho, desta vez o verdadeiro. Para quem não sabe, o primeiro apelido do estabelecimento foi “Bar das Putas” – algo, à época, fartamente compreensível. Hoje já são três ou quatro endereços, todos ótimos. Bistecas virulentas, cerveja gelada, atendimento agressivo. No do centro, aliás de outro proprietário (não me perguntem como é possível), há o popular Batatinha. Desenvolvemos um relacionamento tão bom que o convidei (e mais alguns) ao meu casamento. Ninguém pôde ir, é verdade, porque a Jovem Esposa teimou em casar no horário comercial. Batatinha jamais me serviu doses dobradas: para poupar o tempo de todos, quadruplicava-lhes logo. Sacava-me dinheiro. Trocava-me cheques. Só não fazia cafuné. Tempo bom, não volta mais. E há o Bigode, da Juriti. Se o O’Malleys vangloria-se de ser “Seu Lar Longe do Seu Lar”, é inegável que a Juriti seja “Seu Lar... Perto do Seu Lar”, sobretudo se o outro lar for no Cambuci. Bigode é o Diário de Notícias do bairro. É tão fofoqueiro que conta fofocas a seu respeito para você mesmo, não por engano, mas porque não pode se conter de maneira nenhuma. Há ainda muitos outros, todos inesquecíveis, como aquele careca do Valadares cujo nome desgraçadamente me foge agora. Dia desses, darei início à confecção de um Guia de Garçons, certamente mais útil que os guias de bares que já nos enjoaram tanto. Um bom garçom nem sempre é sinal de uma boa casa, é verdade. Mas, quando se precisa de um amigo, quem se preocupa com essas bobagens? Nota do Editor: André Falavigna é escritor, tendo publicado dezenas de contos e crônicas (sobretudo futebolísticas) na Web. Possui um blog pessoal, ofalavigna.blog.uol.com.br, no qual lança, periodicamente, capítulos de um romance. Colabora com diversas publicações eletrônicas.
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