Sentiu vontade de escrever. Escrever tudo que estava reprimido dentro dela. Olhou demoradamente os jornais empilhados no chão, ao lado da cama, e sentiu um enorme cansaço de viver. Não, não queria escrever, na verdade não podia. Queria ler, ler muito, até esquecer toda aquela angústia que a oprimia e que não conseguia mais esconder. O ventre crescia cada vez mais. Os seios tornavam-se sensíveis. Doíam ao mais leve toque. Diante do espelho era como se pudesse ver o que ali se passava: milhões de células crescendo, se unindo e multiplicando. Um peso que crescia e se avolumava tanto que parecia querer explodir. Não podendo, remexiam-se sem parar nas filas do ônibus, do açougue, na rua. Sentia medo. Medo de que alguém pudesse perceber esses movimentos. Sentia raiva. Por que aquilo não se aquietava dentro dela? Às vezes, ao contrário, era invadida por uma ternura muito grande. Alisava o ventre tentando adivinhar como seria. De que azul seriam seus olhos, de que forma veria o mundo quando chegasse? Outras vezes curvava-se, e ficava ouvindo o som que vinha lá de dentro. Sentia-se tentada a pedir às pessoas que passavam para fazer o mesmo. Mas continha-se a tempo. O medo a dominava. Ninguém, mas ninguém mesmo poderia perceber aquela gravidez. Começou a escolher as roupas com mais cuidado. Seriam gêmeos? Não. Eram milhares e milhares de filhos. Ela sabia, uma mãe sempre sabe. A barriga aumentando e com o passar dos dias, o que ali se aninhava passou a ser a totalidade dos seus sonhos. Pensava nos pezinhos que teriam, nas mãozinhas e sentia uma tristeza muito grande por precisar escondê-los. Pouco a pouco foi se acostumando com a idéia de que eram muitos fervilhando no interior de suas paredes. Sentia-os banhados de sol quando à tarde passeava entre as crianças no parque. Estremecia ao perceber que eles se encolhiam trêmulos quando ela falava com alguém ou lia os jornais. Certo dia, pela manhã, ao sair para comprar leite e pão, uma vizinha lhe disse que engordara. Ficou desesperada, tão desesperada que quase esqueceu tudo sobre o balcão. Voltou para casa correndo e, diante do espelho, apertou-se mais, até quase perder o fôlego. O ventre não tinha mais para onde crescer, parecia inchado, inflamado, carregando aquele fardo. O mais pesado que carregara em toda sua vida. Era como se ali guardasse os filhos de todos os homens. Não se enfaixasse bem e era perigoso escaparem, nascerem ali aos borbotões, num parto ininterrupto, e ela nunca mais conseguiria escapar. Estaria irremediavelmente perdida. Como conter tantos filhos? Eles cresceriam e invadiriam as casas, as lojas, as fábricas, as ruas e, então, ninguém conseguiria mais detê-los. Pensava nisso e enfaixava-se cada vez mais. Desde o princípio desconfiara... O enjôo ao conversar com as vizinhas, as tonturas... Só poderia ser mesmo aquela maldita gravidez. Nove, dez, onze meses se passaram. Teria se enganado nas contas? Não mais saía de casa. Começou a ficar inquieta. Por que não nasciam, se ela os sabia vivos agitando-se dentro do ventre? Sentia-se cada vez mais só. Apenas a esperança de vê-los fora dela alimentava sua solidão. Um dia soltaria as amarras, seu corpo se romperia deixando que eles jorrassem, invadissem as casas, os campos, as ruas, sem precisar escondê-los de olhos soturnos. Muitos dias se passaram sem que a vissem. Uma vizinha, notando sua ausência, foi procurá-la. Entrou e encontrou-a sentada em um sofá descorado. Durante algum tempo ela apenas fitou a vizinha, mas foi como se não a visse. Não disse nada. Nenhuma palavra. Depois disso ninguém mais a viu. A casa fechada. Não saía nem entrava ninguém. A mesma vizinha voltou, bateu à porta durante algum tempo e, como ninguém respondesse tentou entrar. Não conseguindo, chamou as outras. Por fim a rua inteira resolveu arrombar a porta e invadir a casa. Encontraram-na sentada na poltrona, completamente imóvel. O olhar perdido na inutilidade do tempo. As mãos juntas. A direita unida à esquerda, como se uma buscasse na outra o apoio que não viera. Amedrontadas diante do quadro, chamaram a polícia, sempre melhor nesses casos e que, ao sair, laconicamente comunicou aos curiosos: a mulher está morta. Chamaram um médico que confirmou o que a polícia dissera, acrescentando que provavelmente a criança também estaria morta. Essa notícia causou espanto e horror entre as vizinhas. Não a da morte, mas a da gravidez. Ninguém nunca percebera nada, apenas tinham notado que ela engordara um pouco. Então, diziam, aquela mulher que parecia tão bondosa, se enfaixara tanto que matara seu próprio filho sufocado? O médico legista, após a autópsia, muito confuso, procurou o diretor do hospital para onde o corpo fora transportado e narrou o estranho caso daquela mulher. Ao primeiro golpe do bisturi, seu ventre estufado deixara que transbordasse pela mesa de autópsia, se espalhando imediatamente pelo chão, o seu segredo: palavras. Milhões e milhões de palavras. E apesar de tantas, não lhe fora possível salvar nenhuma. Estavam todas mortas. Mortas por estarem guardadas há tanto tempo. Mortas por sufocação. Nota do Editor: Risomar Fasanaro é jornalista, autora de “Eu: primeira pessoa, singular”, obra vencedora do Prêmio Teresa Martin de Literatura em júri composto por Ignácio de Loyola Brandão, Deonísio da Silva e José Louzeiro. Militante contra a última ditadura militar no Brasil.
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