08/09/2025  10h08
· Guia 2025     · O Guaruçá     · Cartões-postais     · Webmail     · Ubatuba            · · ·
O Guaruçá - Informação e Cultura
O GUARUÇÁ Índice d'O Guaruçá Colunistas SEÇÕES SERVIÇOS Biorritmo Busca n'O Guaruçá Expediente Home d'O Guaruçá
Acesso ao Sistema
Login
Senha

« Cadastro Gratuito »
SEÇÃO
Crônicas
07/06/2008 - 05h38
Da sacada Isadora haverá de me ouvir
Eduardo Murta
 

Foi pelos cabelos que a arrastaram. E as mechas mortas acabaram entrelaçadas aos dedos de um dos homens. Ficariam como uma espécie de emblema daqueles tempos. O grupo havia chegado com estandartes e uma coleção de tochas serpenteando as ruelas sinuosas da velha cidade. Pôs a porta ao chão, as chamas negritando as paredes, e vasculhou cômodo a cômodo. Lembrava atmosfera de Inquisição.

As botas ecoando ao assoalho de madeira. Era um eco seco, impiedoso. E logo se deu o grito de viva, como houvessem alcançando um animal de caça. Em seguida, mais uma celebração. Tinham vislumbrado, primeiro, a biblioteca. Juntaram os livros num lençol de seda, azul clarinho. E lançaram tudo dos janelões assobradados. Virariam cinzas em pouco tempo.

Depois veio a descoberta que julgavam essencial. Isadora. Encolhida entre as estantes do fundo. Olheiras de quem pranteara longo. Semblante invocando misericórdia. Em vão. A tomaram pela cabeleira negra. Os pés inutilmente se trançando aos móveis no caminho. Singraram escada abaixo, rimando costelas com degraus, até dar na rua, onde outros já esperavam.

Da sacada de frente, um menino observava. Franzino, não despregara os olhos da cena. Transpirava medo e incertezas. Ouviu o discurso do que pareceria ser o líder. Bradava e ia despregando dos dedos os cabelos da mulher, como quem palitasse preguiçosamente os dentes. Entendeu um nada. Mesmo sem compreender, jamais se esqueceria da frase: “É para servir de exemplo a todos que se atreverem a escrever livros com final infeliz”. Dito, e ateou fogo a autora e obras. Em pleno centro. Em pleno começo do século XX.

As labaredas se projetavam aos casarões, ao som de cânticos da Liga Independente por Histórias Felizes. Era entidade que havia se espalhado como rastilho de pólvora por uma série de localidades. Ortodoxia implacável. O fogo crepitando e as silhuetas incandescentes flutuando à retina daquele menino. Não haveria um só dia em que não perguntasse aos pais se alguém mais fora queimado.

Ele trêmulo, sob segredo guardado a sete chaves. Conhecera Isadora pequenino. Se recordava da voz terna, dos dedos alongados, estilo pianista. E mais se recordaria era das tardes de outubro, a chuva lavando o mundo, em que ela o acomodava miúdo à cadeira de balanço. Começava assim que ele respondesse estar pronto. Lia uma, duas, três histórias. Invariavelmente dramáticas. Numa tristeza desdobrada, mas bela, singular.

Cresceu movendo cuidadosamente a cortina do quarto, a conferir se aquela gente retornaria numa semana qualquer. E incinerou, ele mesmo, coleções de poemas e outros tratados literários que derivavam para um certo estado de melancolia, enclave existencial. As notícias de ação da liga foram escasseando e, ainda à centelha clandestina, novos e clássicos autores voltaram a viajar de mão em mão.

E o agora o personagem não tão menino exala versos sem que o tremor o visite. O faz como quem costura feridas, vela saudade irremediavelmente plural. Danem-se os censores de plantão, morte aos detratores da diversidade sentimental. Ele toma fôlego, coragem. Irá até a sacada. Declamará o poema que fez em lembrança a Isadora. À segunda estrofe já havia platéia ao calçadão. O povaréu de Itabira deslumbrado à figura esquálida de um certo Drummond. Sonhava transformar o mundo com pílulas de receituário poético. Não o mudou, claro, mas apresentou-lhe a novas palavras, a novos sentidos. Temperou-lhe as bordas do coração.


Nota do Editor: Eduardo Murta é jornalista, autor de "Tantas Histórias. Pessoas Tantas", livro lançado em maio de 2006, que reúne 50 crônicas selecionadas publicadas na imprensa. É secretário de Redação do jornal Hoje em Dia, diário de Belo Horizonte. Já teve passagens também pelos jornais Diário de Minas e Estado de Minas, além de Folha de S.Paulo e revista Veja. É um dos colunistas do Hoje em Dia, onde publica às quartas-feiras.

PUBLICIDADE
ÚLTIMAS PUBLICAÇÕES SOBRE "CRÔNICAS"Índice das publicações sobre "CRÔNICAS"
31/12/2022 - 07h23 Enfim, `Arteado´!
30/12/2022 - 05h37 É pracabá
29/12/2022 - 06h33 Onde nascem os meus monstros
28/12/2022 - 06h39 Um Natal adulto
27/12/2022 - 07h36 Holy Night
26/12/2022 - 07h44 A vitória da Argentina
· FALE CONOSCO · ANUNCIE AQUI · TERMOS DE USO ·
Copyright © 1998-2025, UbaWeb. Direitos Reservados.