Era uma casa grande e um enorme quintal com várias árvores frutíferas e balanços de pneus em alguns galhos. Os netos ali brincavam e se lambuzavam com mangas, amoras e goiabas. No fundo do terreno, muitas bananeiras. O lugar mais temido pelas crianças. Entre elas, eu e Miriam, minha irmã mais velha. Eu e minha irmã adorávamos quando mamãe falava: “Meninas, tratem de se arrumar porque vocês vão passar uns dias na casa da vovó!” Minha vó Zélia, com sua paciência, seu sorriso tranqüilo e seus belos olhos verdes, preparava os pãezinhos de minuto, os bolos, a comida com gosto de comida de vó. Meu vô Jaime chegava sempre com algumas guloseimas e tinha um vozeirão que nos deixava meio ressabiadas. Ele detestava correria dentro de casa e eu vivia correndo pra lá e pra cá. Realmente, eu era uma criança “encapetada”. Era cheia de vida, cheia de energia, ávida por explorar cada pedacinho daquele quintal e descobrir formigueiros, minhocas, borboletas, subir em árvores e apreciar a vida sentada em um dos tantos galhos das mangueiras ou goiabeiras, enquanto me fartava com o doce das frutas ou me balançava nos pneus, deixando meus pensamentos voarem junto comigo. Mas o que mais me encantava estava na sala: o piano de minha tia Célia, na época, ainda estudante de música clássica. Ficava hipnotizada pelo som do piano. Minha tia estudava durante horas e muitas de minhas “viagens”, no alto dos galhos ou nos balanços, eram embaladas ao som de Beethoven, Bach e Choppin. E a 5ª Sinfonia de Beethoven marcou minha infância. À noite, para eu e minha irmã dormirmos, minha tia e meus tios, Paulo e Raul, “tocavam um terror” na gente. Quando estávamos com a adrenalina em alta, minha tia sabia como ninguém mostrar o caminho da cama: sentava ao piano e tocava a 5ª Sinfonia de Bethoven, opus 67, enquanto meus tios diziam entre os primeiros acordes, com aquele som tenebroso em suas vozes Tam, tam, tam, tam... (minha tia ao piano): - Era meia-noite... (meus tios) Tam, tam, tam, tam... - Debaixo da bananeira... Tam, tam, tam, tam... - Apareceu a Cantareira... Uahahahahahaha... (em som cavernoso) Eu e minha irmã ficávamos apavoradas e traçávamos uma reta para o quarto. Nos escondíamos sob os lençóis, tremendo de medo da tal da Cantareira. Bem, só para esclarecer: a Cantareira era uma velha que rondava os quintais para roubar criancinhas que não queriam dormir... Minha vó não gostava daquela brincadeira. Sempre vinha nos acalmar e nos dar carinho para que não tivéssemos pesadelos. Ele se divertia com aquela encenação dos filhos e ficava, de fato, penalizado com o pavor das netas. Mas ele era durão e não podia demonstrar os sentimentos. Coisas de avô daquela época. Apesar disso, meu vô era terno. E vocês devem estar se perguntando: Por que raios esta mulher resolveu falar da infância? Eu explico: estou ouvindo a 5ª Sinfonia de Beethoven, esta obra divina. Este texto surgiu a partir do primeiro acorde: Tam, tam, tam, tam! E viajei no tempo... para a casa de minha vó. Revi meus avós, meus tios e, é claro, minha tia ao piano. E eu e Miriam apavoradas. Senti o cheiro do pão de minuto, saindo forno. Senti o gosto da manga, da amora. O cheiro de terra. Ah, o poder da música sobre mim. E, particularmente, de Beethoven. E esta 5ª Sinfonia, que sintetiza toda a obra deste compositor tão sofrido e magnífico, tem o poder de me transportar à fase mais linda de minha vida: minha infância. E me pego pensando: “Que bom que minha infância foi vivida ao som de um piano, na sala da casa de meus avós! Que bom que a trilha sonora da minha infância tem Bach, Choppin, Beethoven, Vivaldi... Que privilegiada sempre fui e sou!” E pensar que a trilha sonora da infância de muita gente é Sergio Malandro, Xuxa e cia... Grande Beethoven! Minha tia? Após vários concertos e uma vida dedicada à música, ainda transmite seus conhecimentos a várias gerações. É professora de piano no Conservatório Nacional de Música do Rio de Janeiro, mesmo depois de aposentada. Até hoje, quando vou visitá-la, senta-se ao piano e executa brilhantemente... Tam, tam, tam, tam... Nota do Editor: Nice Pinheiro é jornalista.
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