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Crônicas
15/06/2008 - 07h00
Silêncio de fogo
Nei Duclós
 

A narrativa objetiva, enxuta, precisa, sem nenhuma emoção, descrevendo algo brutal, arrebatador, sinistro, é o contraponto genial criado por grandes escritores a partir de Cervantes e que chegou ao ápice na obra autobiográfica de Máximo Gorki. Esse achado, que se opõe à exaustão dos truques ilusionistas, se estendeu a Kafka e, despido de toda indumentária possível, até Dalton Trevisan. É ainda uma solução literária radicalmente nova, fora das preferências pelo palavreado arrastado, pomposo, excessivo, explícito.

Arrancar o coração na hora de escrever ou declamar é o expediente mais corriqueiro dos que ainda imaginam a literatura refém das entrelinhas, como alma chorona presa na torre. É um vício que não enxerga a linguagem como criatura e a confunde com emoções baratas. Quando as intenções contaminam a obra, derramando-se para fora da página e expressando a grandiloqüência, fica claro que o excesso é pura vaidade. Costuma arrancar aplausos. É o dó de peito da palavra, que nunca sai da moda.

O difícil é simplesmente abrir mão do que achamos ser nossa humanidade e compor um texto, um poema em que a lança incisiva do talento cutuca a realidade, reproduzindo sua aparente indiferença, a frieza, a voragem infindável de tempos e impérios. É preciso mais do que humildade (que costuma ser o álibi perfeito da arrogância dos bem-postos). Também não se trata de anular-se, já que o narrador continua ativo, dominando o espetáculo. O que precisa ser feito é não atribuir à palavra mais do que ela pode suportar.

Palavra é osso antigo que virou pedra, é árvore impassível em dia de mormaço. As palavras não gemem ou choram nem fazem confissões, como ensinava o árcade virtual Alberto Caieiro quando se referia aos rios (no fundo, à palavra “rios”). O verbo, apesar de divinizado no universo bíblico, é coisa terrena, feito de detalhes, entonações, saliva, roncos. Vibra por acaso como pedaço de papel grudado nas ruínas do deserto, em plena ventania. Não tem utilidade, já que a vida prosaica é dominada pela força e não pelo discurso.

É dispensável em fotos, acenos, beijos, socos, saltos, chutes. Ninguém precisa da palavra quando se entrega a qualquer ação básica, como chorar, respirar, suar. Foi inventada pela vocação de querermos dominar tudo no grito. Ao criar uma palavra para cada coisa, substituímos as coisas pelas palavras, como notou Michel Foucault. Crescemos então num mundo de frases, textos, versos, atirados por todo canto.

As palavras perderam a força pelo excesso de sentido que transferimos para elas. Mas a solução já foi encontrada. Basta render-se ao que a palavra é de fato, um ovo esquecido no ninho depois do furacão. Lá está ela, perdida de si mesma, a brilhar com a possibilidade da fecundação. O escritor a toca pelas pontas, para não quebrá-la. Coloca-a contra a luz para enxergar o estado em que se encontra. E a deposita de volta, sem fazer ruído.

Os mestres são pastores ascetas que descansam ao crepúsculo depois de apascentar o dia inteiro. É quando aguardam a noite, que é o momento em que abrimos os seus livros. O escritor que não se esparrama, nem se entrega, aprende a nos revelar o oculto, usando as palavras no que elas têm de espessura e carne viva. Em absoluto silêncio, fabrica fogo, fazendo fricção entre granito e eternidade. Essa quietude nos surpreende porque não expõe inutilmente seu acervo de assombros.


Nota do Editor: Nei Duclós é autor de três livros de poesia: "Outubro" (1975), "No meio da rua" (1979) e "No mar, Veremos" (2001); de um romance: "Universo Baldio" (2004); e de um livro de conto e crônicas: "O Refúgio do Príncipe – Histórias Sopradas pelo Vento" (2006). Jornalista desde 1970 e formado em História.

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