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Crônicas
15/06/2008 - 12h10
O criador Rodolfo Mesquita
Urariano Mota
 

O indivíduo físico Rodolfo Mesquita é muito difícil de separar da sua arte. Não pelo retrato chapado, 3 x 4. Mas pelo que ele é, quando fala, quando age, quando anda. Para quem não o conhece, e com isso queremos dizer, para quem não tem acesso a sua arte, ele é, pelo que parece, um indivíduo louco, porque é sincero até o ponto do constrangimento, e porque também guarda nestes últimos tempos o visual de um hippie que sobreviveu à hecatombe.

No Recife, em Olinda, a fundamental ignorância, que vem a ser a ignorância artística, conhece um Rodolfo Mesquita distorcido pela caricatura, pela ignara fama. Tratam-no às vezes por uma antonomásia, quando lhe esquecem o nome: “Aquele pintor louco, genial”. Dito o qual, passa, a fundamental ignorância, a narrar uma ou várias histórias folclóricas de Rodolfo, tão ignorantes quanto fantasiosas. Mas esse artista, mesmo para os que foram tocados pelo dom da sua arte, surpreende. Lembro dele, há uns treze anos, quando o encontrei num bar em Olinda, pelo carnaval. Um amigo nosso, comum, estava preso em razão de ter sido encontrado com uns cigarros de maconha. Ao lembrar-lhe esse amigo, Rodolfo me perguntou, em frente a meus dois filhos pequenos:

- Você também fuma maconha?

Difícil foi depois explicar às crianças que eu não fumava maconha, e mais ainda dizer-lhes que ainda assim eu poderia ser preso.

Em outra oportunidade, levei-o convidado para uma palestra no Banco do Brasil. Alertado por ele, antes, que falar, dar palestras, não era o que ele sabia fazer, “não é minha praia, sabe?”, deixei-me ficar ao seu lado como entrevistador, enquanto numa tela eram projetadas imagens dos quadros da sua última exposição. Foi um sucesso. Eu lhe perguntava:

- Rodolfo, o que representa esta imagem?

- Um homem – ele me respondia.

- Certo, mas o que esse homem faz no quadro?

- Está andando.

A platéia delirava, de rir. Bem feito, como diziam os meninos em nossa infância, quando éramos punidos depois de algum ato mau. Bem feito. Se o entrevistador queria razões transcendentais, mistificadoras, para os quadros, não teria o artista Rodolfo para indicá-las. Que o público entendesse como bem entendesse o que ele pintava. E aqui chegamos à honestidade radical desse artista.

Se nos seus quadros ele nada concede ao gosto, mau-gosto ou bom-gosto do distinto público, quando fala sobre o próprio trabalho, ele também afasta de si qualquer medalha falsa:

“Eu sou desenhista. Na verdade, não me considero pintor. Eu desenho sempre. Eventualmente, faço pintura. Em meus quadros nunca parto da pintura. Sempre parto do desenho. Eu sou pintor porque pinto. Mas não sou um pintor no sentido em que Ismael Caldas é”.

Evidentemente, e jamais eventualmente, tal prática de radical honestidade tem conseqüências práticas, nada belamente artísticas.

“Eu trabalho há mais de quarenta anos. O sucesso financeiro é um nó cego. Mas ao mesmo tempo, é um negócio até meio masoquista, eu ficaria muito desconfiado de mim mesmo se o meu trabalho agradasse à burguesia cafona. Se de repente ela começar a gostar do que faço, será por algo circunstancial, e não pelo valor do meu trabalho. O cara pode vender bem, mas é diferente vender bem de ser um bom artista. O sucesso material nada tem a ver com o sucesso artístico. O fato de o meu trabalho ser subterrâneo tem a ver com o teor dele. Se ele fosse decorativo, seria mais vendável. ‘Esse quadro de Rodolfo cai direitinho naquela minha sala’, ia dizer a madame. Madame estaria enganada”.

Aquelas palavras curtas, lacônicas, nas respostas ao entrevistador durante a palestra, eram uma recusa à mistificação, um sonoro não à mentira, jamais uma incapacidade verbal, ou uma incompreensão do próprio trabalho.

“Se eu me desse bem com a burguesia, eu venderia mais. Isso tem a ver com as coisas que eu recuso na vida. Por exemplo: eu sou inconformista. Eu sou porque aceitar a ordem social como ela é não me agrada de forma nenhuma. Esse cotidiano, as coisas que eu vejo, eu não aceito. Eu não agüento isto. É isso que eu procuro colocar no meu trabalho. Eu canalizo minha revolta para o meu trabalho. O que eu vou fazer, brigar com punhal, dar tiro em todo o mundo? Então eu desenho e pinto. Se eu não fizer isto, eu vou ficar muito mal comigo mesmo”.

Daí que para um artista que vende pouco, e por um preço baixo, quando comparado a outros da sua mesma idade e tempo (como deveriam ser pesados os artistas e a sua arte?), daí que ao se lembrar dos novos-ricos que compram quadros por metro quadrado, e pela última cotação do mercado (atenção, sensíveis burgueses, Rodolfo Mesquita logo terá a sua mais alta valorização, porque aos 56 anos de idade pouco se distancia da sua morte), daí que o artista não se ofenda em ser tido e tomado como um outsider.

“Eu não me ofendo, porque a minha situação social é esta. Mas é uma contradição. É ridículo, de certa forma, porque eu sou também considerado um medalhão. Meu currículo é cheio de prêmios, prêmios de Salão, eu sou um artista premiado por instituições oficiais. Se os prêmios fossem medalhas, juntando todos, eu seria uma grande medalha. A contradição é que isto não se traduz em conforto material. Os prêmios que eu recebi não se traduzem em dinheiro, para a minha sobrevivência. Eu sou aquilo que os franceses chamam um ‘sucesso de estima’. E morre por aí mesmo”.

Então eu lhe pergunto do que o artista vive, do que o artista se alimenta, de um ponto de vista espiritual. Na sua voz rouca de cigarros me responde: “Das informações que recebo, entende? Se eu vejo um desenho que eu acho bonito, aquilo me estimula em meu trabalho. Arte se alimenta de arte. Eu reflito o que eu leio, o que eu vejo, o que eu vivo. Eu gosto muito do desenho de Millôr Fernandes, por exemplo. Eu gosto mais do desenho dele do que do texto dele. Já vi coisa boa de Siron Franco. Aqui em Pernambuco, Samico é muito bom, é muito boa a gravura dele. Ismael, eu já falei. Da história, eu me lembro de Van Gogh, é um mestre. Goya é outro desenhista extraordinário. Velásquez, Bosch, Breughel... mas eu não gosto de citar nomes da história da arte, porque de repente dá a impressão de que a gente é pretensioso, que deseja passar a impressão de que é da mesma família. Não é isso. Cito assim porque esses caras são uma fonte de alimento”.

Então eu lhe peço que deixe uma referência, para que as pessoas de sensibilidade vejam o nível e a qualidade do seu trabalho. Ele me responde que pode ser visto em Art Lounge, uma galeria de Lisboa. E por último, e por fim, antes de desligar o telefone, eu lhe pergunto de que vive um artista, de um ponto de vista estritamente material. E ele, com a mesma voz rouca, me solta, sem nem um pigarro: “De carne, de pão, de arroz e feijão. Artista come e defeca, entende?”

Entendo. E desligo.


Nota do Editor: Urariano Mota é escritor, jornalista, colaborador do Observatório da Imprensa, membro da redação de La Insignia, na Espanha. Publicou o romance “Os Corações Futuristas”, cuja paisagem é a ditadura Médici. Tem inédito “O Caso Dom Vital”, uma sátira ao ensino em colégios brasileiros.

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