Quando desembarquei em Madri, a primeira coisa que fiz, ao sair do avião, foi olhar para o céu. Estava frio na capital espanhola. Garoava. Se eu pudesse voltar no tempo, ter uns seis ou sete anos, escutaria minha mãe falar que São Pedro estava lavando o chão do céu. Mas era impossível eu voltar no tempo. Já tinha vinte e cinco anos e minha mãe já havia morrido fazia três anos. Eu não tinha irmãos e meu pai nem cheguei a conhecer. O meu tempo era o agora, mesmo que isso não me fosse bom. Enquanto o táxi rodava pelas ruas de Madri, imaginei ter tomado a decisão certa ao colocar uma calça jeans e tênis naquela sexta-feira. Havia poças de água por todos os lados. Como diria também minha mãe, a cidade estava melada. Mas confesso que usar, junto com o jeans, apenas uma blusinha e um blazer não fora a decisão mais acertada. Eu não levava bagagem comigo e teria que enfrentar, além dos meus velhos problemas, também o frio daquela noite. Não via motivos para parar numa loja e comprar um casaco naquele momento. Já era tarde para isso. Estava atrasada. O relógio de uma igreja, que estava triste, no meu caminho, me mostrava serem quase oito horas. Abracei a pequena bolsa de mão que carregava comigo e esperei que ela me esquentasse. O taxista havia dito que a Rua Miguel de Cervantes ficava perto do aeroporto – que não demoraríamos mais que vinte minutos para chegar e eu achava já ter passado uns quarenta minutos, pelo menos. Apesar da minha pressa, a gente não chegava. O trânsito estava horrível e me lembrava São Paulo. Eu não queria lembrar daquela cidade, eu não queria lembrar de nada, eu só queria paz para mim mesma. Olhando meu reflexo pela janela do carro, percebi o quanto estava cansada. Não dormia bem fazia cinco meses, sete dias e nove horas. Não dormia nada fazia três dias e sete horas. Mas eu sabia que depois de resolver meu problema dormiria bem. Afinal, ninguém consegue dormir com um problema lhe atormentando a noite toda. O travesseiro fica desconfortável. O estômago fica nervoso. A cabeça parece que vai explodir. E o que se sente na garganta e no coração é um aperto imenso. Mas eu sabia que agora tudo ia mudar. Quando eu era menina, achava que a vida seria mais fácil. Pensei que iria estudar, me formar e ser uma profissional de sucesso. Então, antes dos trinta anos eu casaria e teria um casal de filhos. Meu marido seria sempre um amor comigo. E eu, também, me desmancharia de amor por ele e por meus filhos. Mas tudo não passou de sonhos. Nem as duas faculdades que comecei, consegui terminar. Não casei e nem tive filhos. Sempre fui usada pelos homens e por todas as pessoas que atravessaram minha vida. Eu sou do signo de escorpião. Há quem diga que pessoas desse signo sejam vingativas. Eu nunca fui. Acho que sempre fui uma exceção à regra. Nunca fiz mal para alguém. E nem por isso acho que Deus me recompensou. Não que eu fizesse o bem em busca de recompensas – mas se nunca fiz o mal por que Deus me abandonou? Não sei. Nunca entendi a felicidade, a tristeza e nem a lógica de Deus. Percebi que enquanto minhas lágrimas desciam pelo rosto o taxista olhava pelo retrovisor com o rabo do olho. Rabo do olho também era uma expressão que minha mãe dizia muito. Tenho tanta saudade dela. Sempre cuidou tão bem de mim. Foi sempre a minha mãe quem fez o papel de mãe, pai e irmãos na minha vida. Depois de perdê-la nunca mais fui a mesma. Se minha mãe ainda estivesse viva não teria deixado eu vir para Madri. Se ainda estivesse ao meu lado talvez tudo tivesse sido diferente. Quando o taxista disse termos chegado à Rua Miguel de Cervantes número 666, eu enxuguei as lágrimas e desci do carro segurando com força minha bolsa e todas as emoções guardadas dentro de mim. Respirei fundo e toquei a campainha – ficando parada de frente a porta, como uma estátua de gelo. A porta se abriu e vi Santa parada diante de mim com um sorriso nos olhos e uma doçura nos lábios. De dentro de minha bolsa arranquei uma arma junto com um pedido invisível de desculpas e dei um tiro no rosto de Santa. Entrei na casa depressa e encontrei “Ele” sentado à mesa jantando com seu casal de filhos. Antes que os olhares assustados das crianças me demovessem da decisão, dei um tiro no rosto de cada uma. E ao olhar para “Ele” e vê-lo com os olhos esbugalhados, gritando Inês, Inês, Inês... Inês, você ficou louca?! Naquele mesmo instante eu lhe dei um tiro no peito – no exato lugar onde deveria haver um coração e nunca houve. Depois apontei a arma para minha cabeça e decidi que nunca mais pensaria no amor. Eu... nunca mais. (Texto inspirado na crônica “Ele”, de Evelyne Furtado) Nota do Editor: Fábio de Lima é jornalista e escritor, ou “contador de histórias”, como prefere ser chamado. Está escrevendo seu primeiro romance, DOCE DESESPERO, com publicação (ainda!) em data incerta.
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