Havia até quem duvidasse solenemente. Quem apostasse todos seus dobrados na versão de que Porfírio era mero festim literário. Mas, creiam, ele existia. E fazia valer cada dia de sua presença por ali, alimentando o mito de que, sendo miragem, era ao menos fantasia essencial à cidade. Notem, é ele rompendo o descampado em direção à pracinha. Repetindo os mesmo gestos: o aprumo ao cabelo em brilhantina, a escovada no bigode negro. À frente do grupo em espera, se curvava, como fosse um ator saudando a platéia. Já haviam feito as apostas. Ria, entre irônico e matreiro, à certeza de que nenhum ali teria cravado o palpite correto sobre o tipo de história que contaria. O relógio esbarrando às cinco, ritualisticamente dava a partida: iria revelar suas andanças pelo Pantanal e descrever como colhera lágrimas de crocodilo em profusão. Isso, isso. Um galão de dois litros numa só manhã. E tudo jeito espontâneo, num face a face em que desnudara por inteiro os dramas de sua infância órfã. Verdade, verdade... Corrigia o suor à testa ao final, agradecia e, feição de seriedade, ia recolhendo as dez pratas de cada um dos presentes. E desarmando os espíritos à promessa de que remeteria centavo por centavo a instituições de caridade. Conversa! Tivessem a radiografia de sua casa, bangalô em modéstia resumida à fachada, topariam com adega climatizada, biblioteca invejável, charutos confeccionados em coxas cubanas. O modelito surrado que envergava de segunda a sexta, tergal de terceira, linho amarrotado, era, então, mero despiste. Um detalhe a mais no papel de ilusionista. Ia além de enriquecer, é verdade, porque comovia e surpreendia quem o ouvisse. Feito a ocasião em que assegurava ter testemunhado e, na incredulidade, comido neve em plena secura do Vale do Jequitinhonha. Urubus farejando sua morte aos pés dos mandacarus, firmara pensamento e desejo, até que os flocos se desprendessem do céu. Duvidavam? Que tirassem a prova nos jornais da época, ainda feitos em papel. E prestassem muita, muita atenção no testemunho seguinte. Seria singular. Azeitou os espíritos dos convivas, armando e desarmando as mãos em concha, apoiado à sacaria de feijão do armazém de Lorim. Isso reforçava sua expressão de autoridade em historietas. Aquela tinha por protagonista um certo Zé Florindo, jardineiro, dedos encantados. Tudo a que tocava florescia. Planejara, folha a folha, os jardins de Versailles, num distante que beirava mais de três séculos. E milagrosamente, não duvidem, transcendera o tempo. Porfírio contava e ia baixando o tom de voz, como quem revelasse segredos proibidos. Explica-se: num pacto com a primavera, o mestre da jardinagem repunha cota vigorosa dos anos que já vivera. Perguntou se tinham recordação dos campos de girassóis tomando as alamedas de Brasília no ocaso dos governos de chumbo. A turma fez muxoxo, mas notou que acreditavam. Prosseguiu, e surpreendeu. Fez parte tremer, ao citar que Zé Florindo estava ali bem perto deles. Pediu que se lembrassem da gameleira gigante. Da resistência da comunidade e da desistência da politicalha em derrubá-la. O corpo do guardião dos jardins, frisou – os olhos dos espectadores se arregalando –, ainda repousava ao tronco da árvore. Espanto. Correria geral. E o burburinho logo se espalhando. Porfírio agora ri desbragadamente das filas que se formam junto aos galhos arqueados. O povaréu pagando promessa, outros buscando cura. E o milagre que só a ele se revelara. A multidão o tratando como a um rei, doce pai do jardineiro. Ergueria um brinde àquela gente. Ah, claro, com estoque da adega e charutaria merecidamente renovados. Incensando inspiração para as próximas histórias. Acreditem. Nota do Editor: Eduardo Murta é jornalista, autor de "Tantas Histórias. Pessoas Tantas", livro lançado em maio de 2006, que reúne 50 crônicas selecionadas publicadas na imprensa. É secretário de Redação do jornal Hoje em Dia, diário de Belo Horizonte. Já teve passagens também pelos jornais Diário de Minas e Estado de Minas, além de Folha de S.Paulo e revista Veja. É um dos colunistas do Hoje em Dia, onde publica às quartas-feiras.
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