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Crônicas
21/06/2008 - 10h10
A maravilhosa feira de domingo
André Falavigna
 

Eu gosto muito, muito mesmo de feiras livres. Sim, há aquela questão: as pessoas que moram nas ruas onde as feiras se dão não gostam tanto delas, às vezes as detestam; as que vivem no entorno não vivem sem elas, querem mais é vê-las ampliar-se em tamanho e freqüência – desde que, é claro, não cheguem às portas das suas próprias casas. Em defesa das primeiras, reconheço: os cidadãos têm o mesmo direito ao sono tranqüilo, morem perto ou longe da feira e seja lá qual for o dia da semana. A favor das demais, lembro a ambos os grupos que as feiras já estão nas mesmas ruas, na imensa maioria dos casos, há muitas e muitas décadas, e que nem por isso as propriedades trocaram de mão naquele ritmo infernal que seria de se supor caso o problema fosse assim tão grave. E que, por fim, não vejo ninguém muito disposto a deixar essas casas em troca de menos do que se oferece por outras nas mesmas regiões, dentro dos mesmos padrões e onde não haja feira, donde concluo que cada incomodado já arrumou para si um meio de tornar a supressão dos incômodos menos vantajosa do que a manutenção dos benefícios.

E os benefícios são insubstituíveis. Não, não me venham com o supermercado. Há alguns que são sensacionais, não nego. Só que não é possível colocá-los na esquina das pessoas comuns. Se você precisar de frutas de verdade, só vai encontrá-las nos seguintes lugares: nos mercados centrais, em algumas quitandas e em lojas de grandes redes destinadas a seletos grupos. Os mercados são ótimos, mas são centrais – é necessário ir até eles. As quitandas, bem... as quitandas são lugares onde você é assaltado sem pejo, como se fosse coisa normal e mesmo decente. E eu, não sei se vocês já notaram, não pertenço a nenhum grupo seleto – a não ser que seja selecionável a condição de obscuro escritor glutão obcecado por pentelhar jornalistas esportivos ineptos, defender a prática do pôquer sem fronteiras, espezinhar são-paulinos de todos os terceiros sexos e fomentar novas maneiras de se ofender gente estúpida.

E as feiras livres, meus caros, elas são ao ar livre. E não possuem sistema de alto-falante (em São Paulo, estavam caminhando para isso, mas a prefeitura, num arroubo de lucidez digno de nota, proibiu equipamentos de som em feiras livres), o que nos poupa de música ambiente, publicidade renitente e mau-gosto institucional. E são um dos últimos refúgios do acordo privado, em que as regras do jogo sequer precisam de redação formal para, no entanto, continuarem vigentes sem a mais mínima desinteligência. Ah, alguém dirá, mas há regulamentos, normas, portarias, toda uma marginália em torno da atividade – a coisa não é assim tão natural, tão consuetudinária. Bobagem, eu responderei: bobagem.

Sem dúvida, há para as feiras milhões de disposições administrativas. Por outro lado, em regra, prestam-se apenas a facilitar os ganhos duma fiscalização muito pouco interessada em fazê-las cumprir justamente naquelas ocasiões em que se pode levar o bom e velho extra.

Que se alegue que é por essa e por outras que há negociantes desonestos na feira. Responderei, desta feita, que estes correm riscos com os quais Abílio Diniz (honesto o quanto seja, não faço idéia – parece-me que seus funcionários gostam dele, o que já é algo) nem sonha: pode-se mandá-los, pessoalmente e em bom som, ao meio daquele lugar. Pode-se depor contra o negócio deles diante de toda a clientela que os sustenta. Pode-se mesmo esbofeteá-los em público, se for o caso. A feira livre é, com gostoso exagero, o último bastião da civilização ocidental em São Paulo, ou do melhor que há nela: a idéia de confiança.

Explico-me melhor. A feira não é o ambiente ideal para os canalhas – lá eles estão na selva estranha onde o relativismo moral não viceja, acuados, vivendo às escondidas; lá é o habitat do homem bom, de consciência limpa, que sai de casa sem tramar nada contra ninguém e sonhando com sumarentas maçãs, gordos pastéis e refrescantes litros de garapa ou água-de-coco. Na feira, ou o camarada trabalha, ou não se mantém no ramo. Ou o freguês honra suas dívidas, ou perde o crédito. Ou o negociante cumpre suas promessas de qualidade, ou perde o freguês. Moça bonita não paga – mas também não leva. Tudo claro e limpo como a água que jorra da fonte.

Tomo meu caso como exemplo. Freqüento a da Teodureto Souto, no Cambuci, todos os domingos. Já tenho por lá meus amigos, minhas barracas prediletas, meu roteiro imutável. Começo pela altura da Amarantes, à esquerda, com a simpática família de japoneses e seus esplêndidos ovos caipiras. Mais alguns passos, mesmo corredor à direita, e outros japoneses me conseguem verduras e legumes impecáveis a preço honesto. Até aí, tudo está calmo e sob controle. A coisa começa a se animar quando a cordialidade oriental dá lugar aos impulsos mais musicais do pessoal do tomate. “Pode levar por esse preço porque é tudo fruto de roubo” foi a última que ouvi. Nesse ponto, tenho que contornar as bancas de hortifrúti a fim de alcançar o Severo Samurai das Gran Smith. Para quem não sabe, Gran Smith é aquela maçã verde mais azeda, bem firme e que se usa muito em doces. Meu fornecedor possui as melhores que conheço, não as vende fiado e jamais dá desconto, independentemente da quantidade que se quer levar e que, aliás, quanto maior for mais parece ofender o homem. E cobra caro. O velhote é cruel, sabe ganhar meu dinheirinho sem falar qualquer palavra. É assombroso. Ele põe o preço, separa as maçãs, as embrulha e me oferece, tudo isso apenas grunhindo resmungos incompreensíveis e, arrisco dizer, indignados. É como se eu não merecesse as maçãs, como se as fosse desperdiçar.

Apanhadas as Gran Smith, vou à barraca de frutas da Adriana. Uma potência, cobre a esquina inteira. Lá há uma mulher muito miúda, muito cabocla e muito macho chamada Ivone. Sabedora do meu apetite por frutas exóticas, sempre consegue desfalcar-me mediante a apresentação dos frutos mais desconhecidos. Nesta semana, foi a Pitaia Vermelha do Vietnam, que me fez lembrar de John Rambo e de José Paulo Lanyi – mas essa já é outra história. Fora as habituais, como o Decopom e o melão “Eu Sou o Rei”, pedidas semanais. Maracujás doces, idem. E as frutas da época? Estamos entrando no período do morango, da cereja. Terei problemas orçamentários, sobretudo porque ainda há a barraca de queijos, azeite, balsâmicos, embutidos, defumados, pertences – e ainda flores com as quais a Jovem Esposa se diverte enfeitando a casa.

E o feijão Jalo. As batatas Asterix. A barraca de peixes, verdadeira banca de instrução oceanográfica. A barraca de temperos. O pastel da Cris – outra que tem um pé no abençoado Kasatu maru e que honra cada centavo gasto debaixo de sua tenda. E a gente sempre pode pegar para Cristo qualquer uma das atendentes, perguntado coisas como “ei, você segurou o quibe pra mim?” e sabendo que, ora bolas, elas só vão rir da nossa cara.

As pessoas que não conseguem se divertir numa feira livre sempre foram, aos meus olhos, altamente suspeitas. Quem tem motivos para não rir da alcachofra elogiada como se curasse hepatite, ou do mini-abacate mexicano que vem “sem colesterol”, ou ainda dos salutares atributos fantásticos da berinjela? Quem tem razões para não gostar de ver todos aqueles pequenos, médios e imensos peixes, frescos, dispostos com tanto capricho e vendidos aos berros sob os argumentos mais improváveis? E o colorido, a miríade de odores e de possibilidades? Bem sei que tudo isso tem seu preço. E porque sei disso é que me parecem ainda mais estranhos os que não compreendem o tal preço daquela epifania: o ar de terra arrasada que fica para trás quando tudo acaba, o cheiro de peixe morto lembrando-nos de que toda festa tem um fim; de que tudo encontra a hora em que precisa acabar, e de que os restos, inclusive os nossos, devem ser recolhidos – há quem os recolha, afinal - e de que tudo isso é absolutamente necessário ao preparo do fulgurante ressurgimento da vida, logo ali, a meio palmo da vista.

Na semana que já vem vindo.


Nota do Editor: André Falavigna é escritor, tendo publicado dezenas de contos e crônicas (sobretudo futebolísticas) na Web. Possui um blog pessoal, ofalavigna.blog.uol.com.br, no qual lança, periodicamente, capítulos de um romance. Colabora com diversas publicações eletrônicas.

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