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Crônicas
21/06/2008 - 18h10
Imitação da vida
Laís de Castro
 
(Um dia alguém escreveu este título)

Ler o livro que ele leu e no qual rabiscou anotações. É como se vivesse a vida dele, que no passado fez os mesmos gestos, virou as mesmas páginas é então um pouco vivê-lo ou revivê-lo e a saudade se aplaca, como se estivéssemos lado a lado a caminhar pelo escritório, abrir e fechar as gavetas, deslizar os dedos sobre o couro da agenda do ano passado abandonada como eu, a serpente da dor me injetando um veneno fatal.

Mexer as pedras do gamão que movíamos alternadamente de um lado para o outro, sérios, melhor de três, ele incisivo na virilidade do vencedor, eu divertida, na feminilidade do companheirismo, ganhar ou perder, dublê de seis, cinco e dois caixão, falta de sorte, amém. Meu tricô, sua paciência das 40 cartas, minhas meias cerzidas, sua fúria com traduções malfeitas. Amor. Solidariedade. Paciência, nenhuma. Paciência é para os mansos.

Prestar atenção ao pequeno elefante de afroporcelana, depositado ali como um sudário, de costas para a porta de entrada, que “eu ando precisando de sorte” que sorte, que sorte, teria entrado em rajadas de vento por aquela porta que causassem essa partida repentina, com outra pessoa, nas próprias asas do alísio. Nem tempo de retirar o essencial e menos ainda o inessencial, a coleção de dicionários, os cinco mil livros perfeitamente dispostos em estantes de mogno tropical, separados por assunto, agora empoeirados assuntos, areia desértica sob a qual também deitou-se meu resignado sonho de que um dia voltem a ser necessários preciso ler de novo o quinto da esquerda para a direita para finalizar o trabalho de teoria literária da universidade. No oitavo, na segunda prateleira de cima para baixo, contando do início para a direita, depositei minha longa e perene declaração de amor, minha semente de paixão com a esperança que brote, nasça e vingue no amor que como antes se viveu em encantados momentos, ele sacando um livro e lendo uma poesia, poesiando-se em desejos, já que hoje as mãos já não se fundem e nem os olhos se encontram e nem as letras se unem para descrever a magia de outrora, sim, senhor, sim, senhora.

Manusear a lata que guarda alguns selos, clipes e outras pequenas lembranças depositadas ali como em urna de fervor, é como refazer os gestos dele que ali assisti como a um filme, modos tão nítidos como se ali agora, surgem diante de mim os olhos castanhos claríssimos, mel puro de cicatrizar cortes profundos, esse corte em que me abandono agora, vivos, vívidos ensinando-me a cantar a música que a avó lhe compôs.

Alcanço, jogada num canto da gaveta, desvalida como eu, a carteira de couro que guardava as notas arrumadíssimas em ordem decrescente e refaço cada um dos gestos de tira-e-põe as notas, sovina nunca, apenas organizado. Na foto, como nos anos dourados da música, estávamos felizes. A foto havia sido roubada de um momento naquela noite fria em que eu, num surto de audácia me aconcheguei àquele enorme corpo como um cão abandonado e pedi carinho, então, cérebros e músculos em perfeita conexão, fez-se o ardor, o apetite e o suor.

Imagino-me de cabelos brancos, teias de aranha na alma, desde que o tempo é tempo é assim, imemoriais fascinações, desolações em partidas, queimando nas fogueiras do adeus. Enquanto me sento sobre o couro triste da poltrona dele, de quem também tento imitar a postura, ocupando o espaço que ele ocupou um dia, as lágrimas escorrem, sou tão menor que nunca preencherei, falta corpo para rechear toda a cadeira, mas estou aqui e este espaço, que um dia o envolveu, hoje me envolve num movimento temporão, num ritual de saudade que cumpro diariamente.

Na mesma sala, no mesmo escritório, no mesmo quarto, na mesma cama que hoje parece imensa, acídia, melancólica, trepida, imóvel como a própria casa que nos acolheu, penso em mim, nele, em nada, na dor, cansada.

Aqui, jazem meus pés onde jaziam os dele, corre o sangue nas minhas veias como nas dele deslizava, bate meu coração no ritmo em que batucava o dele e talvez eu respire o mesmo ar que ele tenha exalado pelas narinas numa oração pagã que nos torna a mesma pessoa, como a mesma pessoa nos tornamos, no auge da paixão, queimando o peito em loucuras e sofreguidão vital. Quem sabe nessa repetência de gestos e quimeras, eu trago de volta a alegria que ele levou quando saiu nos braços do vento e, então, tomara pudesse compreender em vez de ficar repetindo gestos, tomara pudesse entender em lugar de recriar maneiras de agir, em vez de ensaiar seus passos com milimétrica perfeição. E, paciente, multiplicando os atos do homem que amei e amo, com essa minha foto emoldurada em vidro, eu, aqui deste quadro, que ainda vejo tudo embora tenha partido em 1788.


Nota do Editor: Laís de Castro é jornalista desde os 21 anos, quando estreou na tradicional revista Realidade, trabalhou 18 anos na Editora Abril, vários anos na Carta Editorial e outros mais na Azul. Hoje é diretora da revista UMA. Ganhou 3 prêmios Abril, um concurso de contos infantis no Estado do Paraná e é autora do livro de histórias para adultos: “Um Velho Almirante e outros contos”, publicado pelo selo ARX (Siciliano).

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