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Crônicas
25/06/2008 - 12h13
Que sambem à minha memória
Eduardo Murta
 

Os surdos soando em tom grave eram reverência solene ao homem que levara o nome do morro aos quatro cantos da cidade. Daí os rostos logo ganharem as janelas, buscando o ponto mais alto do lugar. Num instante, eram dezenas, centenas, milhares reunidos em torno da casinha simples na comunidade.

Dois cômodos. Duas janelas. Uma varanda em que samambaias e avencas eram contraste forte ao rosa da parede. E a cadeira de balanço, neste instante só, fazendo silhueta à vista generosa para o mar. Fosse castelo, seria cenário para reis. Mas a vida se incumbira de zelar a que aquele menino nascido ali experimentasse seus dias de majestade. Melhor: que partilhasse dessa oferenda.

E tudo num ar de casualidade que faria inveja a autores de dramalhões clássicos. Garoto pobre, pés descalços, roupas que iam variando nos corpos dos irmãos. Ele, o oitavo numa família de 13. Sete anos e já surpreendia, revelando que elegera seu destino: ser cantor. Pais ganhando o pão longe de casa, foi parar nas mãos de Tia Cremilda.

Acompanhava com paciência felina suas aulinhas no coro da igreja. Escanteado, enquanto o grupo ensaiava. E a turma esbarrando repetidamente naquela nota musical. Até que do nada ele se anunciou. Iluminou o salão com seu tom seguro. Timbre rico, numa glória em que haviam enxergado benção. Domingo veio, e era o pequeno em meio aos veteranos. Dois pontos em evidência: a camisa em gritante desproporção e a voz num sublime de anjos. Mês depois, filas se formavam desde cedo só para vê-lo.

E à sua morada foram chegando presentes em ecletismo cômico – de meras balas recheadas a passarinhos, jibóias, burros chucros. Espingardas, radiolas. E muitos, muitos discos. Ele, interpretação menina, sem compreender como aquelas vozes repousavam ali naqueles bolachões negros. Se magia, se escravidão. Seu reflexo imediato era subir à laje e cantar, cantar, até que o mar não desse mais notícias do sol.

Bermudas ainda, e era ele ali, confiram, centro do palco, comandando o show. Pleno cabaré. O queixo dos bambas fazendo pose de espanto. E a admiração se acentuando na cena em que deixava o camarim no colo do pai. Dormindo... Bendito fosse. A aura se talismã não demoraria a namorar-lhe. Na avenida, embalando o carnaval do morro, faria sua escola campeã. Rompia jejum de década e meia. Veio foi gente querendo tocar-lhe a pele negra, à crença de que exalava sorte, luz.

É esse mesmo sentimento que visita as vielas simples do lugar nesse junho soprando geleiras. Há uma nesga de solidão, percebam, no repicar do surdo em batidas graves, longas. Como imitassem sinos de uma Minas secular pedindo descanso a seus mortos. Mas os sinais iam para além daquele toque cerimonioso. Notem agora, ao fundo, os tamborins...

Agogô, cuíca. E os primeiros acordes da bateria rompendo o silêncio. Cortejo completo. O mestre se orgulharia. Quantas e quantas vezes ele próprio adentrara enterros de amigos entoando velhos sambas. E, ao cenho franzido de algum parente, replicava com a frase que tomara emprestada num canto qualquer: “O sagrado mora é nas alegrias”. Foi então que, ao som de carnaval, da laje em panorâmica, lançaram suas cinzas. Exatamente como Jamelão pedira em testamento. Pra que se sentisse como uma voz pairando eternamente sobre o morro.


Nota do Editor: Eduardo Murta é jornalista, autor de "Tantas Histórias. Pessoas Tantas", livro lançado em maio de 2006, que reúne 50 crônicas selecionadas publicadas na imprensa. É secretário de Redação do jornal Hoje em Dia, diário de Belo Horizonte. Já teve passagens também pelos jornais Diário de Minas e Estado de Minas, além de Folha de S.Paulo e revista Veja. É um dos colunistas do Hoje em Dia (www.hojeemdia.com.br), onde publica às quartas-feiras.

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