Os vizinhos ainda recordam que, da última vez, ele saía de casa na manhã de sábado para comprar pão, mas um carro preto apareceu, saltaram homens de paletós escuros e sumiram com ele sem restar o menor vestígio. Durante dois anos, a família acreditou que o tal voltaria, mas agora já não há mais esperanças, se bem recebam suas cartas com regularidade. Não revela onde está, sequer desconfia, mas alimenta-se à farta e guerreia. Sim, guerreia. É o que faz. Ignora por que e contra quem, só sabe que deve atirar para permanecer vivo. E obedece. Se vence, ganha abraços dos soldados. Se perde, abandonam-no dias seguidos numa ilha deserta. Num dia, está na selva; noutro, na neve – rotina de sobressaltos que quase o enlouqueceu. Mas ele superou – assegura. Afinal, a compensar, tem mulheres duas vezes ao mês, não paga impostos, vive de pilhagens... A vida tornou-se simples: é o que é, sem antônimos nem metáforas! Afirmou-se assim, substantivo, singular, bestial demais para voltar aos seus. Nem quer. Aliás, nas cartas mais recentes, pede que o esqueçam. Nota do Editor: Daniel Santos é jornalista carioca. Trabalhou como repórter e redator nas sucursais de "O Estado de São Paulo" e da "Folha de São Paulo", no Rio de Janeiro, além de "O Globo". Publicou "A filha imperfeita" (poesia, 1995, Editora Arte de Ler) e "Pássaros da mesma gaiola" (contos, 2002, Editora Bruxedo). Com o romance "Ma negresse", ganhou da Biblioteca Nacional uma bolsa para obras em fase de conclusão, em 2001.
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