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Crônicas
02/07/2008 - 07h02
Uma chama espera por ela
Eduardo Murta
 

Ah, foi numa festa de São João, Isalina não se esqueceria... A vida lhe desatando os primeiros nós do sentimento. Ela menina, pintas postiças. Roupa em rendas, brejeira. E o encontro com uma lua flutuando entre o pórtico da matriz e a imensidão azul. Noite clara. Foi dali que extraiu, se não o significado, ao menos o cheiro do amor. E o amor tinha cheiro de canjica. Das feitas com amendoim.

Treze anos, o coração tresloucado em sonhos, se meteu entre as barracas de bingo, bebericou quentão em segredo, provou do chocolate com conhaque... Em minutos, lembrava perus à porta do Natal, as pernas num bambeio bêbado. Aquilo lhe emprestando um misto de temor e, contra-senso, coragem. Foi que caminhou em direção à fogueira gigantesca armada no largo e marchou, já retirando os sapatos, para aquela que era a tradição mais bem-guardada do lugar: os passos sobre a brasa.

Seguia decidida, até sentir o aparte cuidadoso ao braço. E a frase curta, simples, ainda assim emblemática: “Não vá”. Soou carinhoso, não sabia explicar o por quê. E seu olhar trôpego ficou mirando longo aquele menino. Hálito doce, de canjica, ela deixou que as mãos se entrelaçassem em forma despretensiosa. Como gostara daquilo!!! Queria para sempre.

Aliviada, em ares de donzela salva por um príncipe. E se lembrou das lendas locais. De Sá Lia, que diziam ter sido devorada pelo braseiro. A queda sobre o carvão ardente. Os segundos de suspense e pavor. E logo a mulher argüindo misericórdia junto à multidão. Uma tocha viva. Os olhos incandescentes. O fogo assomando-lhe à boca. Contam que, milagre, só o vestido num mosaico junino ficara intacto.

Depois, Zé de Turíbio lhe veio à memória. Descreviam que, doente terminal, acamado fazia anos, não dava mais notícia de quem era neto, filha ou gato de estimação. Se novembro ou fevereiro. Duas badaladas, plena madrugada, e ele surgindo feito fosse um fantasma. Em pijama se lançou às chamas, que beiravam a cintura. E subiu leve, a circunferência da alma se revelando ao povaréu, até desaparecer no entretom de escuridão e estrelas juninas.

Isalina se recordando e, sem se aperceber, enovelando seus dedos aos de... de... Como ele se chamava mesmo? Ah, Xavier. Passaria os 72 anos seguintes bendizendo aquele nome. Nos intervalos de escola, nas festas em família, à cama, à mesa de café, à maternidade. Ela crendo que ele era parte de uma dessas prendas de barraquinha destinadas a fazer sonhar.

Aos 85, se deu conta de que não. Mudança de casa, vasculhando baús, esbarrou com as cartas perfumadas. Ornadas em laços de fita. Relutou em tocá-las, porque não se enxergava ali. Cruzou noites insones, simulou indisposições, a que se mantivesse longe dele. Por fim, abriu. Maldito fosse!!! Décadas distintas. Nomes femininos variados. Mentiras açucaradas.

Que a aguardasse. Naquele São João, embandeirou-se em vestido rivalizando com arco-íris, tão colorido era. Pintas postiças ao rosto, deu o braço ao marido. O aroma da fogueira dominando a atmosfera. Fazia noite clara. Passou pelo ponto de quentão, pelo de chocolate com conhaque. Xavier por lá, temperando o paladar em canjica, ela caminhou rumo à coleção de brasas, já se desfazendo dos sapatos. Ele então lhe tomou o braço, gesto cuidadoso. Viu que chorava. Repetiu a frase emblemática de anos atrás: “Não vá”.

Isalina agora não deixou que as mãos se entrelaçassem. Desvencilhou-se. E avançou sobre o braseiro. Pés em surpreendente calmaria, o coração lhe ardendo. Fez desprender ali sua aliança. Nem olhou para trás. Estava madura para desvendar novos cheiros do amor. Tardio que fosse, ele haveria de estar esperando por ela numa chama qualquer da vida.


Nota do Editor: Eduardo Murta é jornalista, autor de "Tantas Histórias. Pessoas Tantas", livro lançado em maio de 2006, que reúne 50 crônicas selecionadas publicadas na imprensa. É secretário de Redação do jornal Hoje em Dia, diário de Belo Horizonte. Já teve passagens também pelos jornais Diário de Minas e Estado de Minas, além de Folha de S.Paulo e revista Veja. É um dos colunistas do Hoje em Dia (www.hojeemdia.com.br), onde publica às quartas-feiras.

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