Foram três dias de trabalho intenso, em uma atividade que só eu poderia com perfeição fazer, mais ninguém. Primeiro fiz um pacto: não haveria quem se intrometesse, nem mesmo reclamaria do que resultasse do descarte provocado por minha revolução no lar. Descobri o que não me lembrava, gerei em mim um pensamento antigo, mas que por anos teimei em estacionar. “Se lá na casa do caramujo tivessem armários e caixas de inutilidades, como ele andaria com ela nas costas, até subindo parede?” Enfim, meu exercício foi melhor do que uma academia de ginástica, para onde se vai pensando somente em nosso corpo, mesmo que pela vitrine defronte a calçada sejam vistas dezenas de pessoas que não têm casa. Moradores de rua. Final de exposição agropecuária, dezenas de animais expostos, uns amarrados nas baias aos olhos dos tratadores e outros, como eu, andando soltos pelo parque, aos olhos de uma multidão. Estou naquele momento de roupa nova, calças jeans que raramente uso, e para compor o quadro de fazendeiro – mentira, que nem em acostamento de rodovia planto alguma coisa – adquiro, em um dos stands, um chapéu de couro, que me fez parecer um coronel. Coronel de barranco, personagem muito comum das histórias de nosso sertão. Afinal, ainda teríamos quatro dias de falsos sorrisos e corteses apertos de mão, naquele evento onde os corpos dos homens e das mulheres são mais observados do que os imponentes cavalos, bem mais do que as tetas das vacas ali expostas. Enquanto saboreava o churrasco, pelo qual paguei o preço da vaca, coloquei o pensamento em outros chapéus, que fiz uso em cada exposição passada. Estariam onde, no compartimento de cima do guarda-roupa ou em uma caixa de papelão no fundo garagem? Onde, também, estariam mais de uma centena de bonés, ganhos de brindes durante anos e usados uma só vez, no dia em que me deram! Desde a penúltima mudança de residência não promovia um descarte. A casa estava “pesada” e já complicada para se achar algo no meio de tantos entulhos acumulados. Coloquei-me na posição de um caracol cheio de peso, ao ponto de não subir nas paredes, não ultrapassar as muralhas. Não só os chapéus anteriores, onde estariam roupas que não mais uso, fotografias, documentos, enfim a traia que por tempo adquiri? Domingo, antes do último show, voltei para casa. A mulher, os filhos já saturados de parquinhos e outras diversões, todos de roupas novas. Na primeira volta da chave, uma decisão: a casa ficaria mais espaçosa, e caminhão do lixo nos dias seguintes que viesse preparado. Achei os chapéus mofados em uma grande caixa de papelão, no fundo da garagem, e aí tudo mudou. Fui a cada caixa e a cada armário, separando coisas que queria mas não usava. Rasguei mais de mil papéis que não tinham mais sentido em existir, separei roupas abandonadas por algum porque, brinquedos já abandonados pelas crianças, calçados de poucas andadas. Estava parecendo a Imelda Marcos, a célebre rainha colecionadora de sapatos, em país de milhares de pés nos chãos. Dei tudo que me entulhava, até um velho computador trocado por uma de nova geração, uma bicicleta que não mais usei depois de minha operação do coração. E a pilha de jornais que guardava lá no escritório. Para quê, se o político que está na manchete já foi solto? Hoje a casa está mais espaçosa, menos lugares para abrigar insetos e possíveis ratos. Agora ouço agradecimentos: “Seu Pedro eu precisava de um...” Tudo mudou. Minha casa ganhou mais espaço para o amor e para minha alma vagar. E tenho a certeza de que um dia, o dia da minha despedida da terra, não me atormentará a mente com coisas que deixei quando poderia tê-las feito seguirem úteis! Seu Pedro comunica que na mesma caixa em que há um "porta-jóias", que já tem como candidato um novo dono, tem, sobrando, "porta-amor", alguns antigos e disponíveis na embalagem original. Deixando o que agora está abastecido, podem aqueles que se dispuserem enchê-los levar algum. Faça você, também, descarte do que não lhe serve mais. Nota do Editor: Seu Pedro é o jornalista Pedro Diedrichs, DRT-398/BA, editor do jornal Vanguarda, de Guanambi Bahia... É jornalista investigativo, escritor, poeta, e adepto do humor. Também conhecido como “Jornalista do Sertão”. E-mail: seupedro@micks.com.br.
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