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Crônicas
05/07/2008 - 10h05
Sexta 77
Urariano Mota
 

São Paulo, Santana, 1977. O que vejo é um quarto, com entrada independente da casa, pelo oitão, como dizíamos no Recife. O dono da casa nos alugara esse quarto.

Ouvíamos Armstrong, naquela sexta-feira santa. Dizíamo-nos, pior, não nos dizíamos, mas era como se nos disséssemos, que naquele quarto nos trancávamos porque grande era a saudade do que havíamos deixado. Em alto e bom som proclamávamos que um revolucionário deveria fazer todo e qualquer sacrifício, até mesmo deixar o mundo familiar. Para uma nova vida, novos valores, dizíamo-nos.

Ouvíamos Armstrong. Tentei retomá-lo há pouco, busquei as canções que ouvíamos em 1977, mas como? Era um LP duplo, que por sua vez lembrava um compacto mais antigo, em que ele cantava “shoeshine boy”. Na impossibilidade de achar esse compacto, quando fugimos trouxemos o LP duplo, e nos compensávamos com a faixa Nobody Knows. Verdade, confesso, que não era bem essa canção que ouvíamos naquela sexta-feira. Confesso e fecho os olhos, tão forte é a lembrança. Fecho os olhos como quem resiste à luz e vejo as sombras da tarde, e ouço apenas o disco rangendo na agulha da Philips.

O que ouvíamos, o que buscávamos, eram sons de trompete, os solos e variações agudas, intermináveis pela ressonância na gente. Nós e só nós, naquele quarto fechado. Os dois, os três, quando incluímos Armstrong, indo e voltando na agulha, até um final sozinhos cada qual no seu canto. Chorando seco, aquele choro sem lágrimas que não se demonstra, apenas ulcera a alma da gente.

Engraçado, agora sei que é inútil buscar Armstrong no disco físico de 1977. Ainda que fosse possível pegá-lo, tocá-lo, ainda que os sulcos do disco estivessem conservados, ainda que fosse possível retomar a vitrolinha Philips, aquela mesma portátil, preta e prata, feito uma caixa, ainda que pudesse voltar àquele quarto, se ele estivesse ainda em pé ao fim de uma geração, ainda que nós pudéssemos retornar a nossos corpos, ao que fomos em 1977, ainda assim seria impossível tocar mais uma vez o Armstrong daqueles infernais solos.

Eu me dizia, e não sabia o quão ignorante era, eu me dizia e me jactava, de mim para mim, de que nunca em minha vida havia amado tão bem quanto naquela sexta-feira santa. Eu me cantava, naquele ano da graça, como se estivesse num ranking de performance. E assim me dizia porque ouvindo Armstrong durante toda uma tarde, até atingir e penetrar a boquinha da noite, eu me acreditava assim porque ouvi Armstrong em intermináveis sessões de fogo e abraçamento. Isto mesmo, de fogo e de abraço, de apertar e fundir. Então eu me dizia e me achava no alto do pódio. Mal sabia que não existe ranking para o amor.

Nem julgava que o amor tem mil e uma formas, mil e mil astúcias, inumeráveis, loucos e inimaginados disfarces. Estúpido, estúpido, milhões de vezes estúpido fui: nem desconfiava que não se copula pelo número de idas e vindas. O ritmo talvez se comande, se comando cabe ao que sulca os mares da imaginação, mares largos, extensos e fundos, o ritmo talvez se comande pelos sopros do trompete.Talvez, mais precisamente, como naquela tarde.

Na curva desta idade, agora sei, agora, que a tarde amorosa daquela sexta pouco possuía de mim mesmo. Pois como pode um rapaz saído do Recife somente sabendo do sexo a penetração, como pode uma jovem fugida de milicos, que julgava ser a paixão um percorrer tentativas até atingir o puro amor, como podem em um ano como o de 1977 atingir o corno da experiência?

Agora compreendo que aquela tarde muito possuía de angústia, da angústia, a angústia, também ela metamorfoseada, disfarçada em sofreguidão, quando a tortura política do regime nos espreitava. Os sopros de Satchmo, o santelmo na tormenta, vinham como açúcar na ferida aberta, que nos cortando ao nos revolver num agudo levava-nos ao desfalecimento. Agora sei que eu não era eu, que éramos Armstrong + medo + sonho + vinho + ...= Angústia = à força reprimida que se libertava.

Agora compreendo o que naquela tarde havia do tempero do vinho. Agora entendo, não sei se me entendem, que existe uma embriaguez em que a gente não fica bêbado. Não sei se me compreendem, porque falo de uma embriaguez que pega o núcleo da gente mesmo, pega-nos num cerne de verdade tão dura que assusta, que nos mata pela força da revelação.

Quero dizer, lembro remotamente que estávamos bêbados naquele quarto e lhe falei, o quê exatamente não lembro, mas lembro que houve palavras encantatórias que falaram à sua alma e à minha, e mais lembro que a partir de então era solicitado a possuir o espírito que me fizera dizer as palavras daquela tarde. Você não compreendia então. Nem eu. Nós não compreendíamos aquelas palavras saídas do âmago e procurávamos a sua repetição.

Pior que não compreender era o que eu lhe devolvia, “como posso repetir aquele mundo de penetrações?”. E sorríamos. E você ria de mim. Como se pudéssemos voltar pulando de um enterro, como se pudéssemos voltar do cemitério cantando When the saints go marching in.


Nota do Editor: Urariano Mota é escritor, jornalista, colaborador do Observatório da Imprensa, membro da redação de La Insignia, na Espanha. Publicou o romance “Os Corações Futuristas”, cuja paisagem é a ditadura Médici. Tem inédito “O Caso Dom Vital”, uma sátira ao ensino em colégios brasileiros.

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