Jamais dirigi, em toda a vida. Ou melhor: jamais soube dirigir. Tentei, mas faltou-me interesse, necessidade, o que queiram. Nunca fui apaixonado por carros, a despeito de maravilhar-me diante de muitas máquinas cujo engenho não merece reação mais adequada que a de espanto pueril. E, talvez, tivesse sido assim também com os automóveis, mas a maioria das pessoas que conheci e que são aficionadas pelo assunto está, na maior parte do tempo, ocupando grande parcela do espaço que reservo, em meu coração, aos imbecis de todos os gêneros. De alguma maneira, tais criaturas devem ter contaminado meu apetite automobilista, tão natural nos pequeninos. Não sei se é assim no mundo todo. No Brasil, é. Flávio Gomes é o próprio perfil das exceções que confirmam a regra. E a regra é conhecida: cada salão do automóvel é um verdadeiro zoológico de recalcados. Os modelos de luxo, sobretudo esportivos, são a isca com as quais se os enjaula. As modelos e atrizes? Ora, francamente. Não são nem modelos, nem atrizes, e ninguém está ali para vê-las desfilar – com sorte ou azar (a depender do ponto de vista), às vezes, lhes exigem atuações. Não tenho saco. Existe nisso tudo a medida exata que torna distante a infância, coisa santificada, daquela sua caricatura demoníaca que é a infantilidade. Portanto, não é por amar a velocidade que me incomodei com essa nova legislação de trânsito, a do banimento da bebida ao volante. Ora, direis, é porque tu és um cachaceiro e estás solidário. Ora, mandar-vos-ei à merda, não sem antes explicar-vos duas ou três coisinhas que, se mal-entendidas, hão de me impedir de prosseguir com isto aqui de maneira honesta. Cachaceiro é a mãe, para começar. Gosto de beber, inclusive cachaça – ainda que apenas da boa. Eventualmente, posso passar da conta, transgressão que, inclusive, faz parte do prazer de se beber, desde que se possa continuar dela dizendo: eventualmente. Existem meios para se avaliar, de um lado, se houve transgressão e, de outro, se há eventualidade? Talvez existam, mas não se os pode tomar pelo método empírico. O bafômetro me dirá quanto de álcool alguém tem no sangue, mas é incapaz de me dizer se a pessoa o tem porque bebeu e, pior ainda, se tal quantidade de álcool é capaz de lhe arrancar o bom-senso. Não, não me venham com coordenação motora, reflexos, essa tralha toda sem a qual não se pode sequer andar sobre os membros anteriores. Eu estou vivo, e não preciso que me contem como foram as coisas que vi. E o que eu vi foram motoristas filhos da puta que, ao primeiro gole, enchiam-se de coragem para correr ainda mais do que já corriam quando lúcidos, e outros tantos que redobravam a atenção e os cuidados justamente porque haviam bebido o primeiro gole. Compreendam isto, amiguinhos: quem bebe e então corre, o faz porque não presta – quem presta, não corre mesmo bêbado. Pois se é assim, o colunista estaria insinuando que possamos partir para o “liberou geral”, e que se o camarada é pego a dirigir bêbado, mas não esteve a cometer nenhuma infração, devamos então dispensá-lo, não sem aproveitar a ocasião de oferecer nossos mais altos votos de estima e consideração? Bem, se o leitor entendeu desse modo, pode muito bem parar por aqui e voltar à Coleção Vaga-Lume, porque também não vai entender o resto. O problema não está em combater ou mesmo criminalizar a bebedeira no trânsito, necessidade das mais escandalosamente óbvias. O problema está em se negar a combater as más atitudes que pessoas tomam no trânsito, assim como se combate as más atitudes que pessoas tomam nas ruas mal-iluminadas, nos becos, nas portas de garagem, nos estacionamentos de shoppings, nos gabinetes políticos e até mesmo, ora vejam só, nos presídios. Do jeito que publicaram o monstrengo, se minha tia, já avançada em anos, come uma bola de rum e sai à rua, pode ser muito bem que perca a habilitação, ao passo que muitos dos maníacos que conheci e dos quais só se soube que haviam atingido 120 em plena Avenida Paulista quando a multa assustou seus queridos papais, vez que fiscalização nenhuma se dispôs – como não irá agora se dispor – a tria-los e persegui-los (que fosse para verificar se estavam, se estiveram, se costumam estar bêbados ao dirigir), bem, estes ainda precisam acumular pontos e esgotar instâncias administrativas antes que alguém tenha a feliz idéia não de afastá-los do convívio social, o que seria decente, mas sim de, coisa de frouxos, tomar-lhes as miseráveis habilitações, sem as quais, inclusive, continuarão dirigindo como débeis mentais – bêbados ou não. O espírito dessa lei é o mesmo de outras tantas relacionadas a tantos outros assuntos: no fundo, ninguém quer impedir as pessoas de dirigirem bêbadas. O problema é oferecer satisfações a tarados que não se contentam em viver num mundo repleto de dificuldades com as quais se haver, mas que sonham com a perfeição segundo a própria imagem e semelhança. No mundo maravilhoso das pessoas maravilhosas, ninguém dirigirá bêbado porque há uma lei que diz que, para dirigir, sequer se pode ter ingerido bombons recheados com licor de cereja. Tal raciocínio é tão factível quanto outro qualquer que se baseasse na idéia de que, mediante a proibição de se beber antes de se cometer homicídios, os assassinatos passariam a rarear. Trata-se duma piada macabra. Ah, mas algo deve ser feito. Sendo impossível separar o joio do trigo, vamos cuidar para que jamais se misturem. Pois não. Sugiro que criemos possibilidades, saídas para as pessoas que podem passar a vida inteira bebendo sem cometer, por isso, qualquer crime – seja utilizar o carro como arma, seja utilizar a necessidade como desculpa. Muito bem. Se a intenção fosse essa, os santinhos impolutos que defendem a legislação ora vigente teriam, antes de adotá-la, promovido e dado ampla divulgação a um estudo que nos diria o que seria necessário para tornar sustentável a operação de um trem por cada sentido de cada linha do metrô, por hora, entre as 00:00 e as 05:00. De quinta a sábado, por exemplo. Difícil, né? Sim, deve ser difícil, porque a medidas assim preferiram meter-nos todos no mesmo saco em nome dum delírio programático. Se os Comissários do Bem estivessem preocupados em salvar vidas, e não em reformar o homem segundo a cartilha da hora, jamais apelariam para mecanismos tão parecidos com outros notoriamente falhados. Há maridos que espancam as esposas e que, quando alcoolizados, o fazem com mais facilidade, mais desprendimento – até mais gosto. Ainda não vi bebida nenhuma saltar da garrafa e descer, na marra, pela garganta do covarde que fosse. Para mim, a culpa continua sendo dos tais maridos – e a Pirassununga, intragável o quanto seja, segue inocente na história. O problema não é o álcool, que pode até fazer bem (ainda que não ao volante). O problema é o homem que escolhe ser mau. Reparem no seguinte: as pessoas que defendem a tolerância zero ao cigarro e à bebida, às piadas de salão e à moralidade religiosa, são as mesmas que nos dizem que a repressão não é um recurso confiável contra o tráfico de drogas, o latrocínio, o seqüestro seguido de morte, o estupro e a formação de quadrilha para fins de tráfico de drogas, latrocínio, seqüestro seguido de morte e estupro. Ora, mas se a repressão pura e simples é tão ineficiente para impedir todos os crimes que incomodam e existem, porque cargas d’água funcionaria melhor para impedir a consecução daqueles delitos que talvez jamais se manifestem ou que, é chato dizer, muitas vezes sequer são delitos? Segundo tal raciocínio, é de se supor que aqueles animais que arrastaram uma criança pela rua quilômetros a fio enquanto dirigiam um carro, aliás roubado, nada tenham feito pelo que se os possa responsabilizar ou reprimir – afinal, consta que estiveram bastante lúcidos ao longo de todo o trajeto. Esta lei não salvará uma única vida, a despeito dos transtornos que nos vai causar e das trevas da qual é anúncio grave, profundo. Só o que se obterá dela é o enriquecimento de policiais corruptos que, expulsos de suas corporações e atirados à cadeia (reprimidos, portanto), poderiam ser substituídos por gente disposta a fiscalizar e reprimir infratores de trânsito, bêbados ou não. Entrementes, permitirá à meia dúzia desses escroques que se recusam a reformar as polícias ao mesmo tempo em que se recusam a enfrentar os bandidos, tornando assim a todos vilões, o acréscimo de mais outro tijolinho ao já sólido palanque totalitário. Na verdade, não é bem uma lei. É algo como aquilo que o Cambuci conhece – repleto daquela sabedoria ancestral típica de nossos bairros fantasmas – por conversa de bêbado. Caso o legislador aparecesse por lá, entregue aos mais peremptórios discursos, seria impossível conter o homem do povo que lhe interrompesse apenas para retomar as discussões acerca da próxima rodada do Brasileirão e que, desdenhosamente piedoso (quase posso ver o gesto da mão em pá, afastando as tolices pelo ar), asseveraria: - Bebe aí, deputado. Bebe aí. Nota do Editor: André Falavigna é escritor, tendo publicado dezenas de contos e crônicas (sobretudo futebolísticas) na Web. Possui um blog pessoal, ofalavigna.blog.uol.com.br, no qual lança, periodicamente, capítulos de um romance. Colabora com diversas publicações eletrônicas.
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