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Crônicas
13/07/2008 - 12h12
Memórias do velho sentinela
Nei Duclós
 

Fui visitar Ossip Grumpf, que vive na divisa do Paraná com Santa Catarina, num sítio onde cultiva begônias. Está recolhido desde 1999, quando encerrou o século e a carreira em Hollywood. É russo de nascimento, ou húngaro, nunca descobri ao certo. Veio para o Brasil porque tinha a imagem de um país longínquo e perdido, onde jamais descobririam sua verdadeira identidade. No fundo, se reconhecia no anonimato do país que escolheu para viver. Por muito tempo, fez o papel dos sentinelas que sempre morrem no primeiro golpe dos atacantes. Achava que ninguém iria querer saber sobre sua biografia, que tipo de ator se transformou por necessidade e, mais tarde, excelência no ofício.

Ossip era super-requisitado, pois conseguia convencer, só com a linguagem corporal, que era mesmo um sentinela porreta e fortudo capaz de, ao mesmo tempo, oferecer a fragilidade necessária que viabilizava as bobagens criadas pelos roteiristas. Não teríamos tantos heróis não fosse a categoria dos sentinelas, da qual Ossip é considerado Mestre. Era tão bom no que fazia que chegou a interpretar mais de dez sentinelas num único filme. Sabe o cara que é apanhado de costas, apesar de estar atento e super-armado? Era ele. Sabe o cara pego dormindo no posto? Era Ossip. Podia fazer o papel de sentinela árabe, ninja, birmanês, nicaragüense, boliviano. Sempre era pego e desmaiava, ou morria, o que tornava a ação mais eficiente.

Perguntei por que se entregou a um ofício anônimo, que jamais o projetaria como um dos grandes da profissão. Respondeu que foi o que apareceu para fazer. Ninguém queria saber se ele sonhava em ser protagonista ou coadjuvante. “Quer filmar? Então te posta naquele local e leva uma pancada na cabeça. Vais ganhar 50 dólares por cinco segundos de trabalho". Ele topava, claro. Mais tarde, quando ficou velho demais para exercer o papel do bobalhão que os mocinhos destroem no caminho para a glória, tornou-se um consultor do ramo. Ensinava os outros a serem sentinelas. Fazia sucesso, pois, com a decadência da profissão de ator, poucos saberiam desempenhar algo em frente às câmaras sem prejudicar o filme. Ossip era garantia de que Rambo conseguiria matar um por um, sem despertar suspeita de que tudo não passava de armação.

Também perguntei sobre a relação dele com as estrelas. Falou que jamais conseguiu um olhar, um cumprimento de quem quer que fosse. Todos eram ricos e famosos e ele, um remediado (tinha acumulado dólares ao longo do tempo), que jamais mostrava a cara, já que seus personagens estavam sempre no escuro, na sombra, em cima das gáveas dos fortins. Para que conhecer semelhante embuste? Mas na hora em que precisavam, apelavam para Ossip. Aprendiam com ele. Ossip ensinava como atacar um sentinela pelas costas sem dar bandeira da coreografia fajuta. “Agarra aqui, pelo punho, dá esse golpe, desse jeito você não se machuca, nem eu”. Os caras acabavam pegando a manha. Depois que aprendiam, esnobavam Ossip. Nem sequer o convidavam para um lanche.

Mas Ossip não guarda mágoas. Acabou gostando do que fazia e tem inúmeras fotos de grandes filme dos quais participou. Filmes de aventura, ação, suspense, clássicos ou não, besteiras inomináveis, seqüências famosas. Chegou a trabalhar, muito menino, em filmes conhecidos como os “Canhões de Navarone” e mais tarde até mesmo no Rambo Dois. Ele podia fazer o papel de japonês, de índio, de cucaracho, de beduíno. Sabia se maquiar à perfeição.

Foi nessa visita que descobri seu grande segredo: a esposa, Odelia Margot Nevskaia, maquiadora de mão cheia, que o preparava para todas as cenas. Margot poderia ter feito brilhante carreira, mas resolveu seguir seu grande amor pelos filmes que pintassem. Acabou sendo esnobada como ele, e virando maquiadora de um ator só.

Ossip e Margot: uma história de amor que os filmes jamais contam. Foi emocionante visitá-los em seu refúgio, onde cultivam begônias e brincam de sentinela. Ossip fica de braços cruzados, com uma máscara preta, olhando para o infinito. Margot vem pelas costas e o abraça. Ele faz um giro no corpo e a imobiliza. É a única maneira de um velho sentinela vencer: por meio do amor, esse golpe do destino que lava todo o desperdício da vida através do tempo.


Nota do Editor: Nei Duclós é autor de três livros de poesia: "Outubro" (1975), "No meio da rua" (1979) e "No mar, Veremos" (2001); de um romance: "Universo Baldio" (2004); e de um livro de conto e crônicas: "O Refúgio do Príncipe - Histórias Sopradas pelo Vento" (2006). Jornalista desde 1970 e formado em História.

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