Zeca Camargo, no “Fantástico”, domingo passado. Eu, temporariamente sem TV a cabo, domingo passado, em frente à televisão. Reportagem sobre os benefícios de certos alimentos à atividade cerebral e, portanto, à inteligência. O apresentador foi a diversos mercados, muito bonitos, e mostrou-nos esplêndidos exemplares de muitos alimentos extremamente saborosos: couve-flor, abóbora, verduras escuras, tomates opulentos, frutas sumarentas e mesmo peixes gordos e satisfeitos. Foi à casa de um jovem gênio e tentou obter dele informações acerca de sua alimentação que lhe alimentassem a tese segundo a qual uma boa alimentação poderia alimentar a inteligência faminta. Mais um caso de retro-alimentação jornalística, em que tudo o que se quer provar (é, as reportagens agora são sempre para provar alguma idéia cientificamente comprovada, com provas científicas, inclusive) já vem logo na manchete, que é para ir reduzindo o espaço destinado às dúvidas desde o começo, até que no final não se possa discordar de nada sem antes reconhecer-se como o mais perfeito cretino e, de preferência, o mais perfeito cretino preconceituoso, até mesmo o – por que não dizer? – mais perfeito cretino medieval, essa palavra que, hoje em dia, o pessoal utiliza para resumir o argumento todo. Quem me conhece sabe que adoro quase todos os legumes e sou o mais temível devorador de frutas de todas as épocas. Não, não sou vegetariano – ninguém precisa estupidificar-se para ser feliz. Tenho o mais profundo respeito pela carne vermelha, sobretudo quando ela faz jus à cor que lhe designa o tipo; adoro leite e destruo-lhe qualquer derivado sobre os quais puder descer minhas patorras brancas. Diante do porquinho, prostro-me em temor reverencial sincero. E mesmo as avezinhas, sobretudo as que não chegaram a sê-lo (os ovinhos sagrados, vocês sabem), são recebidas em minha mesa com toda a dignidade que sua condição exige. Peixes? Ora, eles, suas ovinhas gordas e seus companheiros de mar e rio estão dentre minhas primeiras opções pantagruélicas. A variedade é algo de que não se pode abrir mão quando a gente quer comer bem – e por comer estou querendo dizer comer com prazer, por lazer e por amor à vida. Sementes, cereais, grãos. Até insetos – adoro içá fritinha na manteiga. Não sei se essas coisas fazem bem para isto ou aquilo. Devem fazer. Compreendo que possam fazer mal, ou por conta do exagero, ou por conta de algum defeito de fabricação nosso – tenho uma cunhada que, se comer carambola, transforma-se numa delas mediante a paralisação dos seus rins; em seguida, empacota e nunca mais se pode falar com ela, empacotada que ela terá sido. Tudo isso em tese, claro. Pelo menos até enquanto escrevo essas linhas de leviano entretenimento associado a mais feroz crítica comportamental. É, acham que esqueci Zeca Camargo? Não esqueci, não. Zeca colheu as informações no campo e foi à luta. Tendo aprendido que certas verduras, algumas frutas ou legumes e, pelo que entendi, determinados peixes podem contribuir para o bom funcionamento do cérebro daquele que lhes consumir, o intrépido jornalista quis dar o exemplo: munido de muitos espécimes de todos esses itens, atirou-os (creio que ainda vivos, é chocante) a um processador de alimentos e, dali, obteve confusa beberagem composta por, salvo engano, ervilhas, grão-de-bico, agrião, acelga, maçã verde, o indefectível açúcar mascavo e, penso eu, anchovas, salmão e sêmen de macacos loucos do Kinshasa. Depois, bebeu a porra toda fazendo cara de participante de “No Limite” obrigado a enfiar um olho de cabra, cru, pra dentro – só que pelo rabo e em chamas, os dois olhos – o da cabra fisiológico, o do cabra metafísico e aviltado pela incursão improvável. Não pode ter sido bom nem para ele, nem para seu pobre cérebro que, capaz de um ato desesperado desses, já não deveria mais estar em condições de ser salvo por nada humano, vegetal ou mesmo mineral, antes mesmo desse procedimento lobotomial e cruel. Agora, então, perdeu-se para sempre. Aguardem as próximas edições do “Fantástico”. A Globo o substituirá por um daqueles robôs que eles mandam trazer da Coréia. Somente os iniciados perceberão a manobra. Cid Moreira foi o primeiro protótipo, e de lá para cá eles melhoraram muito. Uma coisa louca. Mas há mais, e melhor. Agora nos informam que não se deve ir à cama com fome, porque desse modo não há como produzir o tal hormônio do crescimento, tampouco queimar as habituais 500 calorias que se queima durante o sono e, para piorar, compromete-se o desempenho do organismo na manhã seguinte, o que incrementaria o ciclo vicioso do qual resultam gordinhos confortáveis como eu. É espantoso, porque até há pouco deveríamos nos conter na última refeição porque, de acordo com os mesmos princípios empíricos que sustentam a nova orientação, uma refeição completa antes de dormir seria, graças a artimanhas metabólicas, integralmente absorvida, sem dó, pelo nosso corpo pimposo, transformada em rica banha e alojada em pontos que a Jovem Esposa gosta de apertar enquanto diz incongruências as mais sapecas. Como se vê, devemos perdoar essa gente: ela não sabe do que fala. Mandavam-nos substituir a boa, velha e poderosa manteiga pelas gorduras vegetais hidrogenadas, e hoje fazem publicar coisas como “ponha manteiga em sua vida”, ao mesmo tempo em que nos alertam para os riscos do consumo de toda aquela gordura trans – e, pior, insossa – que impingiram aos incautos durante mais de três décadas. Não vou nem comentar os ovos que as pessoas deixaram de comer por razões parecidas, mas que depois se revelaram tão importantes quanto qualquer tofu engendrado nos mais assépticos monastérios. Vocês ainda não ouviram essa, mas já li numa revista especializada: há pesquisadores jurando por todos os deuses (sabe como é, esses pagãos têm sempre uma porção deles) que a gordura presente no foie gras – que é quase ele todo gordura, afinal – pode proporcionar-nos, por motivos estranhíssimos, os mesmos benefícios obtidos pelo consumo de... azeite de oliva! No dia em que isso se confirmar, ou melhor, virar moda, afinal eles não sabem o que dizem mesmo quando dizem coisas agradáveis, eu terei o mais apopléctico acesso de fúria que o Cambuci já terá visto. Alegando confusão mental, vou sugerir novas dietas heterodoxas baseadas num novo paradigma, seja lá o que isso represente no quadro geral das grandes empulhações. Tal paradigma consistirá na observação de todas as regras de todas as dietas conhecidas, exceção feita às de nossos avós que, aliás, eram abençoados pelo total desconhecimento do conceito moderno de dieta. Assim, a pessoa poderá se entupir de ovos, desde que fritos em margarina, mas deverá compensar a coisa com toneladas de soja transgênica compactada em banha de porco e regada a, é claro, grandes quantidades de sêmen de macacos loucos do Kinshasa. Isso quando a lua for nova. Porque, na lua cheia, o camarada precisará dar sete pulinhos em ondas de molho de tomate orgânico, ao mesmo tempo em que vota no PSOL, vendado, e ingere bananas amassadas com aveia e mel, pela manhã cozida – isso, a manhã, e não as bananas. À tarde, recomenda-se uma siesta seguida de sexo anal surpreendente, de preferência de surpresa. Antes de dormir, água com açúcar, chá de papoula e mais outra surpresa decúbito-dorsal. Transtornado, o corpo emagrecerá à força de slogans desnorteantes, ao passo que o cérebro já não poderá evitar mais nada. Não sei como, mas deve haver meios de enfiar o São Paulo nessa história. Enquanto não os encontro, programo minhas refeições de gente normal, mandando às favas (que, com paio, ficam ótimas mesmo na pressão) toda sorte de prestidigitação nutricional. O próximo, senhores. O próximo. Nota do Editor: André Falavigna é escritor, tendo publicado dezenas de contos e crônicas (sobretudo futebolísticas) na Web. Possui um blog pessoal, ofalavigna.blog.uol.com.br, no qual lança, periodicamente, capítulos de um romance. Colabora com diversas publicações eletrônicas.
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