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Opinião
20/08/2008 - 05h30
As frutinhas cristalizadas de Herr Kant
Mario Guerreiro - Parlata
 

Embora nem todos os excêntricos sejam filósofos, filósofos são quase sempre indivíduos excêntricos. Basta ler Vidas e Doutrinas dos Filósofos Ilustres de Diógenes Laércio (EDUNB, 1988) ou A Escada dos Fundos da Filosofia de Wilhelm Weischedel (São Paulo, Angra, 1999), para que possamos nos certificar disso.

A comunidade acadêmica não costuma encarar com bons olhos esse tipo de literatura, seja por considerar que seus membros devem se preocupar com coisa mais sérias e relevantes do que curiosidades e mexericos, seja por considerar que filosofia nada tem a ver com biografia. Estamos de pleno acordo com a primeira alegação, porém discordamos da segunda.

Determinadas afirmações e atitudes de caráter parafilosófico (ou extrafilosófico, com perdão do hibridismo lingüístico) são reveladoras de traços do caráter dos filósofos, e não me venham dizer que o caráter dos mesmos nada tem a ver com sua filosofia, apesar dest’última não dever ser explicada por aquele nem tampouco aquele por esta.

Após narrar algumas idiossincrasias de Immanuel Kant, W. Weischedel nos conta que “pior ainda do que tais ocorrências imprevistas são os ruídos demasiadamente penetrantes e contínuos provenientes do ambiente externo”, ou seja: quando Kant estava em casa contemplando as essências ou escrevendo um de seus muitos escritos filosóficos não gostava nem um pouco de ser perturbado por indesejáveis ruídos.

“Certa vez é o galo do vizinho que irrita Kant. Por isso quer comprar de seu dono esse animal tão nocivo à atividade do pensamento”. (Weischedel, 1999, p. 202). E como o dono do galo recusa-se a vendê-lo, o filósofo resolve mudar de casa. Apesar disso, eu não estou disposto a concordar com o dito de que “os incomodados que se mudem”.

De minha parte, não considero esse horror dos ruídos – principalmente os contínuos e estridentes de um galo e ainda por cima quando desempenhamos uma atividade intelectual – algo que deva ser chamado de “idiossincrasia”: é um sinal de inteligência e refinamento de espírito, como aliás observaria Schopenhauer numa de suas penetrantes máximas. Lamentavelmente, porém, não se pode dizer o mesmo de outro episódio da pitoresca vida de Kant em que se seu caráter não se desvela totalmente, mostra ao menos uma relevante feição do mesmo...

Há bastante tempo li a estória que se segue em algum lugar. Como possuo o hábito de ler muito e minha memória já não é a mesma, não consegui identificar a fonte. Mas dou minha palavra de honra que não estou inventando, eu que nunca menti em toda minha vida, ao menos no que diz respeito a apresentar como relatos de coisas reais o que não passa de invenção ficcional. Enfim, vamos diretamente à vaca fria...

Como é sabido, Immanuel Kant nasceu, viveu e morreu em Königsberg, na época território da Prússia Oriental, hoje Kaliningrado na Lituânia. Kant gostava muito de convidar uns poucos amigos para almoços em que uma agradável conversa sobre amenidades era coroada com sua sobremesa favorita: frutinhas cristalizadas. Devia ser como um dos almoços do indefectível Lord Chesterfield cujo número de convivas não podia ser menor do que o das Graças nem maior do que o das Musas, ou seja: não menor do que 3, nem maior do que 9.

Apesar de provinciana, Königsberg era um importante porto no Mar Báltico, de onde saíam e onde aportavam muitos navios mercantes. E como frutinhas cristalizadas eram Delikatessen inexistentes na Prússia Oriental, Kant as importava da França assim como importou muitas palavras do francês por sua absoluta ausência no alemão – a começar por Kritik (do francês: critique, crítica), apesar de, segundo Martin Heidegger, a língua de Goethe se tratar de uma “língua forte”, e juntamente com o grego, as únicas capazes de captar a recôndita essência do Ser.

Assim sendo, como as viagens navais do porto de Havre ao de Königsberg eram longas e não muito freqüentes, enquanto os almoços de Kant não eram tão longos, mas muito mais freqüentes, ele importava em cada encomenda muitas caixas do seu docinho preferido.

O filósofo estava esperando, há mais ou menos uma semana, um navio em que havia uma encomenda de frutinhas cristalizadas, mas o navio parecia que nunca chegaria ao porto. Finalmente, estava Kant em casa contemplando as essências quando vieram lhe avisar que o tão esperado navio tinha acabado de aportar e já estava descarregando sua carga.

Kant foi imediatamente para o porto e lá chegando foi recebido pelo comandante e este se mostrou bastante acanhado: “Oh! Herr Professor, tenho uma péssima notícia a lhe dar. Enfrentamos uma terrível tempestade no Báltico e tivemos que mudar de rota. Peço ao senhor mil desculpas pelo atraso”. E Kant, se não disse exatamente isto, disse algo mais ou menos assim: “Está bem, Herr Kommandant, mas onde estão minhas caixas de frutas cristalizadas?”

“Oh! Herr Professor Kant, foi uma situação calamitosa... Com o desvio de rota, passamos mais tempo do que previsto no mar e nossos mantimentos acabaram. Vi-me obrigado a dar suas frutas cristalizadas para a tripulação comer!” E Kant extremamente indignado: “O senhor está me dizendo que se apropriou de minha propriedade?! Que deixasse a tripulação morrer de fome!” Conta-se ainda que um aluno de Kant, que o estava acompanhando, observou: “O senhor não está falando sério, não é mesmo, professor?” Ao que o ‘anjo de Königsberg’ completou: “Nunca falei tão sério em toda a minha vida”.

Supondo que isso constitua o essencial do referido episódio, mostra que na razão prática Kant considerava a propriedade um valor mais elevado do que a vida - mesmo das vidas ameaçadas por um estado de extrema privação, como as da tripulação do referido navio - assim como considerava a honra daquele que se recusa a mentir um valor mais elevado do que a propriedade e/ou a vida. Embora isto seja uma aberração do ponto de vista da axiologia jurídica, é uma exigência do imperativo categórico kantiano.

Segundo pensamos, a ética kantiana, além de ser uma ética da convicção (na terminologia de Max Weber) é a expressão de um fanatismo, não aquele tipo fanatismo movido por paixões avassaladoras, mas sim um frio fanatismo de princípios semelhante, mutatis mutandis, aos de Robespierre, Lenin et caterva.


Nota do Editor: Mario Guerreiro (xerxes39@gmail.com) é Doutor em Filosofia pela UFRJ. Professor Adjunto IV do Depto. de Filosofia da UFRJ. Ex-Pesquisador do CNPq. Ex-Membro do ILTC [Instituto de Lógica, Filosofia e Teoria da Ciência], da SBEC. Membro Fundador da Sociedade Brasileira de Análise Filosófica. Membro Fundador da Sociedade de Economia Personalista. Membro do Instituto Liberal do Rio de Janeiro e da Sociedade de Estudos Filosóficos e Interdisciplinares da UniverCidade. Autor de obras como Problemas de Filosofia da Linguagem (EDUFF, Niterói, 1985); O Dizível e O Indizível (Papirus, Campinas, 1989); Ética Mínima Para Homens Práticos (Instituto Liberal, Rio de Janeiro, 1995). O Problema da Ficção na Filosofia Analítica (Editora UEL, Londrina, 1999). Ceticismo ou Senso Comum? (EDIPUCRS, Porto Alegre, 1999). Deus Existe? Uma Investigação Filosófica. (Editora UEL, Londrina, 2000). Liberdade ou Igualdade (Porto Alegre, EDIOUCRS, 2002).

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